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domingo, dezembro 16, 2007

Isto _ Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

domingo, dezembro 09, 2007

Voltaire _ BIOGRAFIA DO AUTOR



FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em
Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio
de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um
procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular
por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do OEdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia OEdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).
Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l'Homme, etc.
Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753. Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais. Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.

sábado, dezembro 01, 2007

O que é isto _ A filosofia?

Versão eletrônica do livro “Que é isto – A Filosofia?”
Tradução e notas: Ernildo Stein
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
A distribuição desse arquivo (e de outros baseados nele) é livre, desde que se dê os créditos da digitalização aos membros do grupo
Acrópolis e se cite o endereço da homepage do grupo no corpo do texto do arquivo em questão, tal como está acima.
QU’EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE?1
COM ESTA questão tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeterminado. Por ser indeterminado, podemos tratá-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema tão amplo, se interpenetrarem todas as opiniões, corremos o risco de nosso diálogo perder a devida concentração. Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questão. Desta maneira, levaremos o diálogo para uma direção segura. Procedendo assim, o diálogo é conduzido a um caminho. Digo: a um caminho. Assim concedemos que este não é o único caminho. Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a atenção, no que segue, é na verdade em caminho que nos permite levantar a questão e respondê-la.
Suponhamos que seríamos capazes de encontrar um caminho para responder mais exatamente à questão; então se levanta imediatamente uma grave objeção contra o tema de nosso encontro. Quando perguntamos:
Que é isto — a filosofia?, falamos sobre a filosofia. Perguntando desta maneira, permanecemos, num ponto acima da filosofia e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questão é penetrar na filosofia, demorarmo-nos nela, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, “filosofar”. O caminho de nossa discussão deve ter por isso não apenas uma direção bem clara, mas esta direção deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no âmbito da filosofia, e não fora e em torno dela. O caminho de nossa discussão deve ser, portanto, de tal tipo e direção que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (nous touche),2 e justamente em nosso ser.
Mas não se transforma assim a filosofia num objeto de nosso mundo afetivo e sentimental?
‘Com os belos sentimentos faz-se a má literatura.” “C’est avec les beaux sentiments que l’on faít la mauvaise litterature.” Esta palavra de André Gide não vale só para a literatura; vale ainda mais para a filosofia. Mesmo os mais belos sentimentos não pertencem à filosofia. Diz -se que os sentimentos são algo de irracional. A filosofia, pelo contrário, não é apenas algo racional, mas a própria guarda da ratio. Afirmando isto decidimos sem querer algo sobre o que é a filosofia. Com nossa pergunta já nos antecipamos à resposta. Qualquer uma terá por certa a afirmação de que a filosofia é tarefa da ratio. E, contudo, esta afirmação é talvez uma resposta apressada e descontrolada à pergunta: Que é isto — a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questões. Que é isto — a ratio, a razão? Onde e por quem foi decidido o que é a razão? Arvorou-se a ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa a resposta, de onde recebe ela sua missão e seu papel? Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua história, então não é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negócio da ratio. Todavia, tão logo pomos em suspeição a caracterização da filosofia como um comportamento racional, torna-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence à esfera do ir racional. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padrão para a determinação o racional, e isto de um tal modo que novamente pressupõe como óbvio o que seja a razão.
Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nós homens em nosso ser e nos toca, então poderia ser que esta maneira de ser afetado não tem absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional.
Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: é necessário maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o título: “Que é isto — A Filosofia?”
Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questão num caminho claramente orientado, para não vagarmos através de representações arbitrárias e ocasionais a respeito da filosofia. Como, porém, encontraremos o caminho no qual poderemos determinar de maneira segura a questão? O caminho para o qual desejaria apontar agora está imediatamente diante de nós. E precisamente pelo fato de ser o mais próximo o achamos difícil. Mesmo quando o encontramos, movemo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente nele. Perguntamos: Que é isto — a filosofia? Pronunciamos assaz freqüentes vezes a palavra “filosofia”. Se, porém, agora não mais empregarmos a palavra “filosofia’ como um termo gasto; se em vez disso escutarmos a palavra “filosofia” em sua origem, então, ela soa philosophía. A palavra ‘filosofia” fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavra grega, um caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de nós, pois a palavra já foi proferida há muito tempo.De outro lado, ele já se estende atrás de nós, pois ouvimos e pronunciamos esta palavra desde os primórdios de nossa civilização. Desta maneira, a palavra grega philosophía é um caminho sobre o qual estamos a caminho. Conhecemos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos conhecimentos históricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir.
A palavra philosophía diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez
e antes de tudo vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a philosophía determina também a linha mestra de nossa história ocidental-européia. A batida expressão “filosofia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a ‘filosofia” é grega em sua essência —e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver. Mas a essência originariamente grega da filosofia é dirigida e dominada, na época de sua vigência na Modernidade Européia, por representações do cristianismo. A hegemonia destas representações é mediada pela Idade Média. Entretanto, não se pode dizer que por isto a filosofia se tornou cristã, quer dizer, uma tarefa da fé na revelação e na autoridade da Igreja. A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos”. Isto é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato de elas brotarem da marcha mais íntima da história ocidental-européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era da história humana de “era atômica”. A energia atômica descoberta e liberada pelas ciências é representada como aquele poder que deve determinar a marcha da história. Entretanto, a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse precedido e antecipado. A filosofia, porém, é: he philosophía. Esta palavra grega liga nosso diálogo a uma tradição historial. Pelo fato de esta tradição permanecer única, ela é também unívoca. A tradição designada pelo nome grego philosophía, tradição nomeada pela palavra historial philosophía, mostra-nos a direção de um caminho, no qual perguntamos: que é isto — a filosofia?
A tradição não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, delivrer¹ é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo. Se estivermos verdadeiramente atentos à palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filosofia” nos convoca para penetrarmos na história da origem grega da filosofia. A palavra philosophía está, de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história; podemos mesmo dizer: ela está na certidão de nascimento da atual época da história universal que se chama era atômica. Por isso somente podemos levantar a questão: Que é isto — a filosofia?, se começamos um diálogo com o pensamento do mundo grego. Porém, não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega.
Perguntamos: que é isto...? Em grego isto é: ti estin. A questão relativa ao que algo seja permanece, todavia, multívoca. Podemos perguntar, por perguntar, por exemplo: que é aquilo lá longe? Obtemos então a resposta: uma árvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente.
Podemos, entretanto, questionar mais: que é aquilo que designamos “árvore”? Com a questão agora posta avançamos para a proximidade do ti estin grego. E aquela forma de questionar desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles. Estes perguntam, por e xemplo: Que é isto — o belo? Que é isto —o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — o movimento? Agora, porém, devemos prestar atenção para o fato de que nas questões acima não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que’, em que sentido se deve compreender o ti. Aquilo que o ‘que’ significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a qüididade. Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o ti. Ele significa precisamente a idéia O fato de nós, quando perguntamos pelo ti, pelo quid, nos referimos à “idéia” não é absolutamente evidente. Aristóteles dá uma outra explicação do ti que Platão. Outra ainda dá Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o ti, o quid, o “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos à filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questão originariamente grega.
Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogação: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que é isto...?” — ambos permanecem gregos em sua proveniência. Nós mesmos fazemos parte desta origem, mesmo então quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia’. Somos propria mente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela e por ela, tão logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filosofia? não apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo.
[A questão: que é filosofia? não é uma questão que uma espécie de conhecimento se coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questão também não é de cunho histórico; não se interessa em resolver como começou e se desenvolveu aquilo que se chama “filosofia”. A questão é carregada de historicidade, é historial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso destino. Ainda mais: ela não é ‘uma”, ela é a questão historial de nossa existência ocidental-européia.]
Se penetrarmos no sentido pleno e originário da questão: Que é isto — a filosofia? então nosso questionar encontrou, em sua proveniência historial, uma direção para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questão mesma é um caminho. Ele conduz da existência própria ao mundo grego até nós, quando não para além de nós mesmos. Estamos — se perseverarmos na questão — a caminho, num caminho claramente orientado. Todavia, não nos dá isto uma garantia de que já, desde agora, sejamos capazes de trilhar este caminho de maneira correta. Já desde há muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo é, como a questão da essência. A questão da essência torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada. A questão de nosso encontro refere-se à essência da filosofia. Se esta questão brota realmente de uma indigência e se não está fadada a continuar apenas um simulacro de questão para alimentar uma conversa, então a filosofia deve ter-se tornado para nós problemática, enquanto filosofia. É isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se tornou a filosofia problemática para nós? Isto evidentemente só podemos declarar se já lançamos um olhar para dentro da filosofia. Para isso é necessário que antes saibamos que é isto — a filosofia. Desta maneira somos estranhamente acossados d entro de um círculo. A filosofia mesma parece ser este círculo. Suponhamos que não nos podemos libertar imediatamente do cerco deste círculo; entretanto, é-nos permitido olhar para este círculo. Para onde se dirigirá nosso olhar? A palavra grega philosophía mostra-nos a direção.
Aqui se impõe uma observação fundamental. Se nós agora ou mais tarde prestamos atenção às palavras da língua grega, penetramos numa esfera privilegiada. Lentamente vislumbramos em nossa reflexão que a língua grega não é uma simples língua como as européias que conhecemos. A língua grega, e somente ela, é lógos. Disto ainda deveremos tratar ainda mais profundamente em nossas discussões. Para o momento sirva a in dicação: o que é dito na língua grega é, de modo privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, então seguimos seu légein, o que expõe sem intermediários, O que ela expõe é o que está aí diante de nós. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente sem presença da coisa mesma, aí diante de nós, e não primeiro apenas diante de uma simples significação verbal. A palavra grega philosophía remonta à palavra philósophos.
Originariamente esta palavra é um adjetivo como philárgyros, o que ama a
prata, como philótimos, o que ama a honra. A palavra philósophos foi
presumivelmente criada por Heráclito. Isto quer dizer que para Heráclito ainda
não existe a philosophía. Um anèr philósophos não é um homem ‘filosófico’. O
adjetivo grego philósophos significa algo absolutamente diferente que os
adjetivos filosófico, philosophique. Um anèr philósophos é aquele, hòs philei tá
sophón; philein, que ama a sophón significa aqui, no sentido de Heráclito: homologein,
falar assim como o Lógos fala, quer dizer, corresponder ao Lógos. Este corresponder está em acordo com o sophón. Acordo é harmonia. O elemento específico de philein do amor, pensado por Heráclito, é a harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres, nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro. O anèr philósophos ama o sophón. O que esta palavra diz para Heráclito é difícil traduzir. Podemos, porém, elucidá-lo a partir da própria explicação de Heráclito. De acordo com isto, tá sophón significa: Hèn Pánta ‘Um (é) Tudo.
Tudo quer dizer aqui: Pánta tà ónta, a totalidade, o todo do ente. Hèn, o Um,
designa: o que é um, o único, o que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente
no ser. O sophón significa: todo ente é no ser. Dito mais precisamente: o ser é o
ente. Nesta locução, o “é” traz uma carga transitiva e designa algo assim como
“recolhe”. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente. O ser é o recolhimento
— Lógos.
Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quando não de modo ofensivo. Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser, ninguém precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual a outra solução para o ente a não ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permaneça recolhido no ser, que no fenômeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, e a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tomou para os gregos o mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar e proteger o poder de espanto deste mais espantoso — contra o ataque do entendimento sofista, que dispunha logo de uma explicação, compreensível para qualquer um, para tudo e a difundia. A salvação do mais espantoso — ente no ser — se deu pelo fato de que alguns se fizeram a caminho na sua direção, quer dizer, do sophón. Estes tomaram-se por isto aqueles que tendiam para o sophón e que através de sua própria aspiração despertavam nos outros homens o anseio pelo sophón e o mantinham aceso. O philein tà sophón, aquele acordo com o sophón de que falamos acima, a harmonia, transformou-se em órecsis, num aspirar pelo sophón. O sophón — o ente no ser — é agora propriamente procurado. Pelo fato de o philein não ser mais um acordo originário com o sophón, mas um singular aspirar pelo sophón, o philein tò sophón torna-se “philosophía”. Esta aspiração é determinada pelo Éros.
Uma tal procura que aspira pelo sophón, pelo hèn pánta, pelo ente no ser,
se articula agora numa questão: que é o ente, enquanto é? Somente agora o
pensamento toma-se “filosofia”. Heráclito e Parmênides ainda não eram
“filósofos”. Por que não? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” não
designa aqui o cálculo de um rendimento, porém aponta para uma outra
dimensão do pensamento. Heráclito e Parmênides eram “maiores” no sentido de
que ainda se situavam no acordo com o Lógos, quer dizer, com o Hèn Pánta. O
passo para a “filosofia”, preparado pela sofística, só foi realizado por Sócrates e
Platão. Aristóteles então, quase dois séculos depois de Heráclito, caracterizou
este passo com a seguinte afirmação: Kai dê kai tá pálai te kai nyn kai aei
zetoúmenon kai aei aporoúmenon, ti tò ón? (Metafísica, VI, 1, 1028 b 2 ss.). Na
tradução isso soa: “Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) está em
marcha já desde os primór dios, e também agora e para sempre e para o qual
sempre de novo não encontra acesso (e que é por isso questionado): que é o
ente? (ti tò ón)”.
A filosofia procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser. Aristóteles elucida isto, acrescentando uma explicação ao ti tò ón, que é o ente?, na passagem acima citada: toutó esti tís he ousia? Traduzido: “Isto (a saber, ti tà ón) significa: que é a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade.
Esta, porém — a ousia —, é determinada por Platão como idéia, por Aristóteles
como enérgeia.
De momento ainda não é necessário analisar mais exatamente o que Aristóteles entende por enérgeia e em que medida a ousia se deixa determinar pela enérgeia. O importante por ora é que prestemos atenção como Aristóteles delimita a filosofia em sua essência. No primeiro livro da Metafísica (Metafísica, 1, 2, 982 b 9 s.), o filósofo diz o seguinte: A filosofia é epistéme tõn próton arkhõn Kai aitiõn theoretiké? Traduz-se facilmente epistéme por “ciência”. Isto induz ao erro, porque, com demasiada facilidade, permitimos que se insinue a moderna concepção de “ciência”. A tradução de epistéme por “ciência” é também, então, enganosa quando entendemos “ciência” no sentido filosófico que tinham em mente Fichte, Schelling e Hegel. A palavra epistéme deriva do particípio epistámenos. Assim se chama o homem enquanto competente e hábil (competência no sentido de appartenance). A filosofia é epistéme tís, uma espécie de competência, theoretiké, que é capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. E por isso que a filosofia é epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta?
Aristóteles di-lo, fazendo referência às pròtai arkhai kai aitíai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razões e causas” — a saber, do ente. As primeiras razões e causas constituem assim o ser do ente. Após dois milênios e meio me parece que teria chagado o tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “razão” e “causa”.
Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razão” e
“causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente?
Mas nós dirigimos nossa atenção para outra coisa. A citada afirmação de Aristóteles diz-nos para onde está a caminho aquilo que se chama, desde Platão, “filosofia”. A afirmação nos informa sobre isto que é — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competência capaz de perscrutar o ente, a saber, sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente.
A questão que deve dar ao nosso diálogo a inquietude fecunda e o movimento e indicar para nosso encontro a direção do caminho, a questão: que é filosofia? Aristóteles já a respondeu. Portanto, não é mais necessário nosso encontro. Está encerrado antes de ter começado. Revidar-se-á logo que a afirmação de Aristóteles sobre o que é a filosofia não pode ser absolutamente a única resposta à nossa questão. No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterização aristotélica de filosofia pode-se evidentemente representar e explicar tanto o pensamento antes de Aristóteles e Platão quanto a filosofia posterior a Aristóteles. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua essência, passou por várias transformações nos dois milênios que seguiram o Estagirita. Quem ousaria negá-lo? Mas não podemos passar por alto o fato de a filosofia de Aristóteles e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformações e através delas. Pois as transformações são a garantia para o parentesco no mesmo.
De nenhum modo afirmamos com isto que a definição aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é já em meio à história do pensamento grego uma determinada explicação daquele pensamento e do que lhe foi dado como tarefa. A caracterização aristotélica da filosofia não se deixa absolutamente retraduzir no pensamento de Heráclito e de Parmênides; pelo contrário, a definição aristotélica de filosofia certamente é livre continuação da aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuação porque de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente e as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético.
Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questão: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: não podemos ater-nos apenas à definição de Aristóteles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definições de filosofia. E depois? Depois alcançaremos uma fórmula vazia, que serve para qualquer tipo de filosofia. E então? Então estaremos o mais longe possível de uma resposta à nossa questão. Por que se chega a isto? Porque, pelo processo há pouco referido, somente reunimos historicamente as definições que estão aí prontas e as dissolvemos numa fórmula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dispõe de gr ande erudição e auxiliado por verificações certas. Nesta empresa não precisamos, nem em grau mínimo, penetrar na filosofia de tal modo que meditemos sobre a essência da filosofia. Procedendo daquela maneira nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e sólidos e até mais úteis sobre as formas como a filosofia foi representada no curso de sua história.
Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta autêntica, isto é, legítima,
para a questão: Que é isto — a filosofia? A resposta somente pode ser uma resposta
filosofante, uma resposta que enquanto resposta filosofa por ela mesma. Mas como compreender esta afirmação? Em que medida uma resposta pode, na medida em que é res-posta, filosofar? Procurarei escla recer isto agora provisoriamente por algumas indicações. Aquilo que tenho em mente e a que me refiro sempre perturbará novamente nosso diálogo. Será até a pedra de toque para averiguar se nosso encontro tem chance de se tomar um encontro verdadeiramente filosófico. Coisa que não está absolutamente em nosso poder. Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente apenas então - quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam.
Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado pelo ser do ente. Nós mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encontro daquilo para onde a filosofia está a caminho. Nosso falar deve co-responder àquilo pelo qual os filósofos são interpelados. Se formos felizes neste co-responder, respondemos de maneira autêntica à questão:
Que é isto — a filosofia? A palavra alemã “Antworten”, responder, significa propriamente a mesma coisa que ent-sprechen, co-responder. A resposta à nossa questão não se esgota numa afirmação que res-ponde à questão com uma verificação sobre o que se deve representar quando se ouve o conceito ‘filosofia”. A resposta não é uma afirmação que replica (n’est pas une réponse), a resposta é muito mais a co-respondência (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Imediatamente, porém, quiséramos saber o que constitui o elemento característico da resposta, no sentido da correspondência. Mas primeiro que tudo importa chegarmos a uma correspondência, antes que sobre ela le vantemos a teoria.
A resposta à questão: Que é isto — a filosofia? consiste no fato de correspondermos àquilo para onde a filosofia está a caminho. E isto é: o ser do ente. Num tal corresponder prestamos, desde o começo, atenção àquilo que a filosofia já nos inspirou, a filosofia, quer dizer, a philosophía entendida em sentido grego. Por isso somente chegamos assim à correspondência, quer dizer, à resposta à nossa questão, se permanecemos no diálogo com aquilo para onde a tradição da filosofia nos remete, isto é, libera. Não encontramos a resposta à questão, que é a filosofia, através de enunciados históricos sobre as definições da filosofia, mas através do diálogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente.
Este caminho para a resposta à nossa questão não representa uma ruptura com a história, nem uma negação da história, mas uma apropriação e transformação do que foi transmitido. Uma tal apropriação da história é designada com a expressão “destruição”. O sentido desta palavra é cla ramente determinado em Ser e Tempo (§ 6). Destruição não significa ruína, mas desmontar, demolir e pôr -de-lado — a saber, as afirmações puramente históricas sobre a história da filosofia. Destruição significa: abrir nosso ouvido, torna-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a esta inspiração, conseguimos situar-nos na correspondência. Mas, enquanto dizemos isto, já se anunciou uma objeção. Eis o teor: será primeiro necessário fazer um esforço para atingirmos a correspondência ao ser do ente? Não estamos nós homens já sempre numa tal correspondência, e não apenas de fato, mas do mais íntimo de nosso ser? Não constitui esta correspondência o traço fundamental de nosso ser? Na verdade, esta é a situação. Mas, se a situação é esta, então não podemos dizer que primeiro nos devemos situar nesta correspondência. E, contudo, dizemos isto com razão. Pois nós residimos, sem dúvida, sempre e em toda parte, na correspondência ao ser do ente; entretanto, só raramente somos atentos à inspiração do ser. Não há dúvida que a correspondência ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas só de tempos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nós e aberto a um desenvolvimento. Só quando acontece isto correspondemos propriamente àquilo que concerne à filosofia que está a caminho do ser do ente, O corresponder ao ser do ente é a filosofia; mas ela o é somente então e apenas então quando esta correspondência se exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento. Este corresponder se dá de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou não ouvia um tal apelo, ou ainda, do modo como é dito e silenciado o que se ouviu. Nosso encontro pode dar oportunidade para meditar sobre isto. Procuro agora dizer apenas uma palavra preliminar ao encontro. Desejaria ligar o que foi exposto até agora àquilo que afloramos, fazendo referencia a palavra de André Gide sobre os “belos sentimentos”. Philosophía é a correspondência propriamente exercida, que fala na medida em que é dócil ao apelo do ser do ente, O corresponder escuta a voz do apelo. O que como voz do ser se dirige a nós dis -põe nosso corresponder. “Co-responder” signific a então: ser dis -posto, être dis-posé,³ a saber, a partir do ser do ente. Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isto entregue ao serviço daquilo que é. O ente enquanto tal dis -põe de tal maneira o falar que o dizer se harmoniza (accorder) como o ser do ente. O corresponder é, necessariamente e sempre e não apenas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis - posto. Ele está numa disposição. E só com base na dis -posição (dis-position) o dizer da correspondência recebe sua precisão, sua vocação. Enquanto dis -posta e con-vocada, a correspondência é essencialmente uma dis-posição. Por isso o nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira. A dis -posição não é um concerto de sentimentos que emergem casualmente, que apenas acompanham a correspondência. Se caracterizamos a filosofia como a correspondência dis -posta, não-posta, não é absolutamente intenção nossa entregar o pensamento às mudanças fortuitas e vacilações de estados de ânimo. Antes, trata -se unicamente de apontar para o fato de que toda precisão do dizer se funda numa disposição da correspondência, da correspondance, digo eu, à escuta do apelo.
Antes de mais nada, porém, convém notar que a referência à essencial disposição da correspondência não é uma invenção apenas de nossos dias. Já os pensadores gregos, Platão e Aristóteles, chamaram a atenção para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensão do homem, que designamos dis-posição (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).
Platão diz (Teeteto, 155 d): mala gàr philosóphou touto tò páthos, tò
thaumázein, ou gàr alie arkhè philojophias hè haúte. “É verdadeiramente de um filósofo estes pháthos — o espanto; pois não há outra origem imperante da filosofia que este.”
O espanto é, enquanto páthos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” não é deixado para trás no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, o que impera. O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior.
Aristóteles diz o mesmo (Metafísica, 1, 2, 982 b 12 ss.): dià gàr tò
thaumázein hoi ánthropoi kaì nyn kai prôton ércsanto philosophein. “Pelo espanto
os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar” (àquilo de onde nasce o filosofar e que constantemente determina sua marcha).
Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quiséssemos pensar que Platão e Aristóteles apenas constatam que o espanto é a causa do filosofar. Se esta fosse a opinião deles, então diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre o ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, começaram eles a filosofar. Tão logo a filosofia se pôs em marcha, tornou-se o espanto supérfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pôde desaparecer já que fora apenas um estímulo. Entretanto: o espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia. O espanto é páthos. Traduzimos habitualmente páthos por paixão, turbilhão afetivo. Mas pháthos remonta a páskhein, sofrer, agüentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. E ousado, como sempre em tais casos, traduzir páthos por dis-posição, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmoniza e nos con-voca por um apelo. Devemos, todavia, ousar esta tradução porque só ela nos impede de representarmos páthos psicologicamente no sentido da modernidade. Somente se compreendermos páthos como dis-posição (dis-position) podemos também caracterizar melhor o thaumàzein, o espanto. No espanto detemo-nos (être en arrêt). E como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira. O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a dis -posição na qual e para a qual o ser do ente se abre, O espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente.
De bem outra espécie é aquela dis -posição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar ti tò ón —que é o ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo. Pois na Idade Média certitudo não significava certeza, mas a segura delimitação de um ente naquilo que ele e. Aqui certitudo ainda coincide com a significação de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um clare et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis posição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna. Mas em que consiste o télos, a consumação da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? É este termo determinado por uma outra dis - posição? Onde devemos nós procurar a consumação da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia dos últimos anos de Schelling? E que acontece com Marx e Nietzsche? Já se movimentam eles fora da órbita da filosofia moderna? Se não, como determinar seu lugar?
Parece até que levantamos apenas questões históricas. Mas na verdade meditamos o destino essencial da filosofia. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do ser. Qual a dis -posição em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta unívoca a esta pergunta é praticamente impossível. Provavelmente impera uma dis -posição afetiva fundamental. Ela, porém, permanece oculta para nós. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda não encontrou seu claro caminho. O que encontramos são apenas dis-posições do pensamento de diversas tonalidades. Dúvida e desespero de um lado e cega prossessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se confrontam.
Medo e angústia misturam-se com esperança e confiança. Muitas vezes e quase
por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da
representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer
disposição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade prosaica da
planificação são sinais de um tipo de dis -posição. Não apenas isto; mesmo a
razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, predis-
posta para a confiança na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras.(4)
A correspondência propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia. Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela é ao modo da correspondência que se harmoniza e põe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Está a serviço da linguagem. O que isto significa é de difícil compreensão para nós hoje, pois nossa representação comum da linguagem passou por um estranho processo de transformações.
Como conseqüência disso a linguagem aparece como um instrumento de
expressão.(5) De acordo com isso, tem-se por mais acertado dizer que a
linguagem está a serviço do pensamento em vez de: o pensamento como corespondência
está a serviço da linguagem. Mas, antes de tudo, a representação atual da linguagem está tão longe quanto possível da experiência grega da linguagem. Aos gregos se manifesta a essência da linguagem como o lógos. Mas o que significa lógos e légein? Apenas hoje começamos lentamente, através de múltiplas interpretações do lógos, a descerrar para nossos olhos o véu sobre sua originária essência grega. Entretanto, nós não somos capazes nem de um dia regressar a esta essência da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como herança. Pelo contrário, devemos entrar em diálogo com a experiência grega da linguagem como lógos. Por quê? Porque nós, sem uma suficiente reflexão sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondência acima assinalada, o que ela é como uma privilegiada maneira de dizer.
Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filosofia é necessariamente levado a discutir a relação entre pensar e poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas”.
Agora, porém, haveria boas razões para exigir que nosso encontro se limitasse à questão que trata da filosofia. Esta restrição seria só então possível e até necessária, se do diálogo resultasse que a filosofia não é aquilo que aqui lhe atribuímos: uma correspondência, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente.
Com outras palavras: nosso encontro não se propõe a tarefa de desenvolver um programa fixo. Mas ele quisera ser um esforço de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente. Nomeando isto, pensamos no que já Aris tóteles diz:
Tò òn légetai pollakhõs.
“O sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno”.
1. Em francês, no texto original.
2. Palavras e citações gregas, latinas e francesas, que ocorrem no original alemão, são mantidas no texto em português
3. Disposição (Stimmung) é um originário modo de ser do ser-aí, vinculado ao sentimento de situação (Befindlichkeit) que acompanha a derelicção (Geworfenheift). Pela disposição (que nada tem a ver com tonalidades psicológicas) o ser-no-mundo é radicalmente a berto. Esta abertura antecede o conhecer e o quer e é condição de possibilidade de qualquer orientar-se para próprio da in tencionalidade (veja -se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semântica das derivações de Stimmung: bestimmt, gestimmt, abstirnmen,
Ges!imnitheit, Bestimmtheit, Heidegger procura tornar claro como esta disposição é uma abertura que determina a correspondência ao ser, na medida em que é instaurada pela voz (Stimme) do ser, O filósofo toca aqui nas raízes do comportamento filosófico, da atitude originalmente do filosofar. (N. do T.)
4. Já em Ser e Tempo (§ 29) se alude à disposição que acompanha a teoria e se afirma que “o conhecimento ávido por determinações lógicas se enraíza
ontológica e existencialmente no sentido de situação, característico do ser-nomundo
(p. 138). Apontando para o fato de que a própria razão está pre-dis-posta para confiar na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras, Heidegger fere um tabu que os sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desde que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shurkamp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atrás de todo conhecimento existe o interesse que o dirige, que a teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmações de Heidegger, uma antecipação das razões ontológico-existenciais da mistura do conhecimento e interesse. Não há conhecimento imune ao processo de ideologização; dele não escapa nem mesmo o conhecimento científico, por mais exato, rigoroso e neutro que se proclame. (N. do T.)
5. A crítica da instrumentalização da linguagem visa a proteger o sentido, a dimensão conotadora e simbólica, contra a redução da linguagem ao nível da denotação, do simplesmente operativo. Não se trata apenas de salvar a mensagem lingüística da ameaça da pura semioticidade. O filósofo descobre na linguagem o poder do lógos, do dizer como processo apofântico; entrevê na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raízes do humano. Se lembrarmos as três constantes que a tradição apresenta na filosofia da linguagem — a lógica da linguagem, o humanismo da linguagem e a teologia da linguagem—, verificamos que o filósofo assume a segunda, radicaliza-a pela hermenêutica existencial, carrega-a de historicidade e transforma a linguagem em centro de discussão, pela idéia da destruição da ontologia tradicional, a partir de sua tessitura categorial. Em Heidegger, uma ontologia já impossível é substituída pela critica da linguagem, numa antecipação da moderna analítica da linguagem, veja-se esta admoestação do filósofo que abre um texto seu, saído
no jornal Neue Zurcher Zeitung (Zeichen, 21-9-1969): ‘A linguagem representada
como pura semioticidade (Zeíchengebung) oferece o ponto de partida para a tecnização da linguagem pela teoria da informação. A instauração da relação do homem com a linguagem que parte destes pressupostos realiza, da maneira mais inquietante, a exigência de Karl Marx: “Trata-se de transformar o mundo”. (N. do T.)

domingo, novembro 25, 2007

SCHOPENHAUER*

Thomas Mann
*Texto escrito em português clássico
NOSSA alegria diante dum sistema metafisico, nossa satisfação em
presença duma construção do pensamento, em que a organização espiritual do
mundo se mostra num conjunto lógico, coerente a harmônico, sempre
dependem eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que
a alta satisfação, sempre serena afinal, que a atividade artística nos
proporciona quando cria a ordem e a forma a nos permite abranger com a vista
o caos da vida, dando-lhe transparência.
A verdade e a beleza devem ser postas em relação; tomadas em si
mesmas, sem o apoio que mútuamente se prestam, são valores mui instáveis.
A beleza que não se fundasse na verdade, que não pudesse apelar para ela, que
não nascesse dela a não vivesse graças a ela, seria pura quimera - e "que é a
verdade"? Tirados dum mundo de fenômenos, duma visão do mundo
submetida a múltiplas condições, nossos conceitos, como o discerne e o
reconhece a filosofia crítica, não são para use transcendente mas só imanente;
esse material de nosso pensamento e, com maior razão, os juízos que nos
permite construir, não são meios adequados para quem quer apreender a
própria essência das coisas e a verdadeira conexão do mundo a da existência.
Mesmo que, por uma experiência intimamente vivida, se determine mais
convencida a mais convincentemente o que está na base dos fenômenos ainda
não se terá trazido à luz a raiz das coisas. Só isto encoraja o espírito humano a
tentar este ensaio, que se lhe impõe a isto o justifica; é a hipótese necessária de
que também o nosso próprio ser, o nosso mais profundo Eu, é um elemento
desse "substractum" do mundo, que aí deve ter raízes e que, por conseguinte,
dele talvez se tirem alguns dados que permitam esclarecer a ligação do mundo
dos fenômenos a da essência verdadeira das coisas.
A história do pensamento de Schopenhauer faz-nos remontar à fonte do
conhecimento em que se abeberou o Ocidente, onde o espírito científico tanto
quanto o senso artístico da Europa têm origem a onde se encontram ainda
unidos: ela conduz a Platão. As coisas do mundo, ensinava o pensador grego,
não têm existência verdadeira; sempre em "devenir", jamais são. Não valem
como objetos do verdadeiro conhecimento, pois só existe conhecimento que é
em si, por si a sem mudança; ora, em sua multiplicidade a na relatividade de
seu ser de empréstimo, que bem se poderia chamar um não-ser, jamais podem
ser senão o objeto duma opinião provocada. por uma sensação. São sombras.
O que só é verdadeiramente, o que não cessa de ser, sem jamais se transformar
nem se perder, são os arquétipos, realidades a que essas sombras
correspondem, são as Idéias eternas, os protótipos de todas as coisas. Ignoram
estes a multiplicidade, porque, por essência, cada um deles é único, é precisamente
o original, cujas cópias ou sombras não são mais que coisas ostentando
o mesmo nome que ele, coisas isoladas, perecíveis e semelhantes. As idéias
não poderiam nascer nem desaparecer com êles, porque são intemporais e
verdadeiramente "existentes". Para elas não há "devenir" nem aniquilamento,
como para suas cópias caducas. Só delas, pois, há um conhecimento verdadeiro,
como do que, em todos os tempos e de todos os pontos de vista, é.
Ter espírito científico e preparar-se para a ciência é manifestamente
subordinar à idéia a multiplicidade dos fenômenos, combinar somente com ela
a verdade e a autêntica realidade e firmemente se ater à abstração
contemplativa, à espiritualização do conhecimento. Por esta distinção de valor
entre o fenômeno e a idéia, a matéria e o espírito, o mundo da aparência e o
mundo da verdade, o temporal e o eterno, Platão representa um acontecimento
prodigioso na história do espírito humano e, pois, na ordem da ciência e da
moral.
Sentem todos que a esta elevação da idéia, realidade única, acima dos
fenômenos e da sua efêmera multiplicidade, se liga uma idéia profundamente
moral, a desvalorização do sensível em benefício do espiritual, do temporal
em proveito do eterno, e isto está inteiramente no espírito do futuro
cristianismo: porque, por assim dizer, o passageiro fenômeno e a afeição
sensual que inspira, com isso se transportam para o domínio do pecado: - só
aquele que se volta para o eterno encontra a salvação, a verdade. Vista sob
esse aspecto, a filosofia de Platão mostra o parentesco e a aliança entre a
ciência e o ascetismo moral.
Mas outro valor tem esta distinção: o valor artístico. De acordo com essa
doutrina, com efeito, o tempo ê simplesmente esta visão recortada e
fragmentada que um ser individual pode ter Idéias, as quais, situadas fora do
tempo, são eternas. "O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a
imagem móvel da eternidade". Com isso, essa doutrina pré-cristã e já cristã
apresenta-nos também, em sua ascética sabedoria, um atrativo, um encanto de
sensualidade infinitamente artística. Com efeito, conceber o mundo como uma
fantasmagoria. multicor e móbil de imagens que deixam transparecer a Idéia,
o Espírito, é atitude eminentemente artística, que, por assim dizer, de pronto
restitui o artista a si mesmo. Na verdade, é ele quem, pleno de alegria sensual
e pecaminosa, pode sentir-se preso aos fenômenos do mundo, às imagens do
mundo, pois sabe que pertence ao mesmo tempo ao mundo da Idéia e do
Espírito, porque é o Mago, graças ao qual podem estes nos aparecer através
dos fenômenos. Surge aqui a missão mediatária do artista, seu papel de
mediador nas encantações herméticas entre o mundo do alto e o mundo de
baixo, entre a Idéia e o fenômeno, o espírito e a sensualidade; porque tal é, de
fato, a posição verdadeiramente cósmica da arte; sua estranha situação e a
comprometida. dignidade de sua ação no mundo não podem definir-se nem
explicar-se de outra maneira. O símbolo da lua, este emblema cósmico de toda
mediação, é próprio da arte.
Platão artista... Uma filosofia, não o esqueçamos, não age somente - e por
vezes age muito pouco - por sua moral, pela doutrina tio sabedoria que põe na
sua interpretação e na sua experiência do mundo, mas também e sobretudo por
esta própria experiência que, aliás, constitui a parte essencial, primeira e
pessoal duma filosofia - e que não é absolutamente um simples acréscimo
intelectual e moral à doutrina de salvação e de verdade. Muito resta ainda
quando se arrancou dum filósofo sua filosofia e grave seria se nada restasse.
Nietzsche, o discípulo de Schopenhauer, que renegou seu mestre em espírito,
escreveu sobre ele estes versos:
O que ele ensinou não mais existe, O que ele viveu permanece de pé,
Contemplai-o, pois! Nada pôde submetê-lo.
A doutrina de Schopenhauer, de que falaremos agora, e o dinamismo de
sua verdade têm-se prestado a tantos abusos como a mensagem de Platão, a
qual, não obstante seu ascetismo científico, pôde ser amoedada em valores de
arte e especialmente ser explorada por um artista de colossal talento, Ricardo
Wagner (de quem talvez tratemos mais tarde). Mas a culpa não cabe
certamente ao outro mestre e iniciador de Schopenhauer, àquele que o ajudou
a construir seu sistema de pensamento: Kant, puro espírito, cuja natureza tanto
o afastava da arte quanto o dispunha à crítica.
Emanuel Kant, crítico do conhecimento, que, do domínio da especulação,
onde seu vôo a extraviara, reconduziu a .filosofia. para o espírito humano,
tomou-o por objeto de suas investigações e traçou limites à razão; Kant, na
segunda metade do século XVIII, ensinava em Kõnigsberg, na Prússia,
princípios mui semelhantes aos que dois milênios antes o pensador ateniense
havia exposto. Toda a nossa experiência do mundo -dizia ele - está submetida
a três leis e condições que são as "formas em que necessariamente se elabora
todo o nosso conhecimento. Chamam-se tempo, espaço, causalidade. Mas não
apreendem o mundo tal como ele pode ser em si e por si, independentemente
de nosso esforço por percebê-lo, a "coisa em si"; atêm-se somente à sua
aparência fenomenal, porque não são mais que as formas de nosso
conhecimento. Nenhuma, multiplicidade, nenhuma aparição e desaparição é
possível senão por elas três; elas são, pois, sustentadas unicamente pela
aparência e absolutamente nada podem saber da "coisa em si", à qual não se
poderia de maneira alguma aplicá-las. Isso se estende mesmo até ao nosso
próprio Eu: conhecemo-lo somente como aparência, não em sua essência. Em
outros termos: espaço, tempo, causalidade, são dispositivos de nossa inteligência,
e a concepção das coisas que nos chega em imagem, condicionada por
eles, se chama, pois imanente; transcendente seria a que poderíamos atingir se
a razão, voltando-se sobre si mesma, se tornasse crítica da razão, depois de ter
peneirado o caráter de meros modos de conhecimento que essas três formas
interpostas têm''.
Tal é a concepção fundamental de Kant. Vê-se que muito se aproxima da
de Platão. Apresentam ambas o mundo visível como uma aparência, isto é,
como uma parição inconsistente, que só adquire importância e alguma
realidade pelo que nela transparece e se exprime. Para ambas, a verdadeira
realidade se encontra acima, atrás, em resumo, "para além" de sua aparência e
pouco importa, em suma, que se chame "Idéia" ou "Coisa em si".
Schopenhauer abrigava esses dois conceitos no mais profundo de seu pensamento.
Com predileção, cedo estudou Platão e Kant (em Gottingem
1809-1811). A todos os pensadores preferia esses dois, tão afastados no.
espaço e no tempo. Tomou-lhes emprestado o que podia ser-lhe útil e, para o
seu temperamento tradicionalista, foi grande satisfação poder utilizá-lo tão
perfeitamente; mas, transformou-o totalmente, conforme a sua própria
natureza, que era inteiramente diferente, muito mais moderna, mais impetuosa
e mais dolorosa.
Tomou as "Idéias" e a "Coisa em si". Mas, com esta, ousou temerária
tentativa, quase interdita, cuja necessidade, porém, sentia, profundamente,
com o ardor de possante convicção: definiu-a, chamou-a por seu nome,
afirmou -posto que após Kant fosse impossível saber qualquer coisa a respeito
- que sabia o que ela é : a Vontade. Seria a causa primeira e ir redutível do ser,
sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e
operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a
vida, porque seria o querer-viver. Ela o seria a ponto que dizer "vontade" seria
falar precisamente da vontade de vida e servir-se da fórmula mais explícita,
enunciar de fato um pleonasmo. Jamais a vontade quereria outra coisa senão a
vida. E por que a quereria? Por que a achasse desejável? Por que tal era o
resultado de alguma investigação objetiva sobre o valor da vida? Oh? Não! A
esse querer, qualquer conhecimento continuaria a ser perfeitamente estranho;
seria algo que não dependeria absolutamente dela, algo de primordial e de
incondicionado, um impulso cego, um instinto absolutamente gratuito, duma
profundeza sem fundo e dependeria tampouco de quaisquer juízos sobre o
valor da vida que, ao contrário, seriam estes juízos que dependeriam inteiramente
do grau de potência do querer-viver.
A vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à
causalidade, cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu
desejo e de sua alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta
objetivação se realizaria de tal maneira que sua unidade primitiva se tornaria
multiplicidade, o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação.
Para saciar seu desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse
princípio, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo
dos fenômenos, o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais
isolado desses fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da
vontade, sua objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso ainda: seria
representação, minha representação, como a tua, a de todo indivíduo e a
representação que cada qual faz de si para si - especialmente por meios da
inteligência que conhece e que, nos graus superiores de sua objetivação, a
vontade criou para torná-la para si - especialmente por meios da inteligência
que produziria a vontade, mas, ao inverso, esta que engendraria aquela. Não
seriam a inteligência, o espírito, a faculdade de conhecer, que constituiriam o
elemento primeiro e dominador; seria a vontade, e a inteligência, sua serva.
Seria possível o contrário, urna vez que a própria faculdade de conhecer se
liga à objetivação da vontade nos graus superiores e que, sem ela, não teria
nenhuma ocasião de se realizar? Num mundo que é inteiramente obra da
vontade, do instinto de viver absoluto, gratuito, ignorando razões e juízos de
valor, não poderia a inteligência necessariamente pretender senão segundo lugar.
A sensibilidade, os nervos, o cérebro, tanto como outras partes do
organismo - em particular. da mesma maneira que o oposto do cérebro, órgão
de conhecimento, seu pólo contrário.- o aparelho sexual - seriam a expressão
da vontade num dado momento de sua objetivação e a representação
resultante, igualmente destinada a seu serviço, não teria mais seu fim em si,
mas constituiria um simples meio, um instrumento, que pertmitiria à vontade
atender a seus fins, exatamente como esses outros órgãos. Essas relações da
inteligência e da vontade, essa afirmação de Schopenhauer de que a primeira
era apenas o dócil instrumento da segunda implicam muito de cômico e de
humilhante angústia; determinam o conteúdo de todas as inclinações e
aptidões do homem para se iludir e imaginar que sua vontade recebe
instruções e dados da inteligência, ao passo que, segundo o nosso filósofo, é
precisamente o contrário; a inteligência - independentemente de sua tarefa,
que consiste em projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e
em ajudá-la em sua luta pela existência num grau mais elevado - tem por única
missão servir de porta-voz à vontade, justificá-la, provê-la de motivos
"morais", em suma, racionalizar nossos instintos.
Era uma apreciação notavelmente pessimista; e, de fato, todos os
compêndios nos ensinam que Schopenhauer foi em primeiro lugar o filósofo
da vontade e, em segundo lugar, o do pessimismo. Mas, não há primeiro nem
segundo; as duas coisas não são mais que uma: ê1e foi a segunda, porque foi a
outra e ao mesmo tempo; ele foi necessariamente pessimista, porque era o
filósofo e o psicólogo da vontade. Se a encaramos como o oposto da satisfação
beata, a vontade é em si mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação,
esforço em vista de algo, inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento,
e um mundo da vontade outra coisa não pode ser senão o mundo do
sofrimento. Objetivando-se em tudo que existe, a vontade expia no mundo
físico sua alegria metafísica e a, expia no senti 'o próprio da palavra: "expia"
da maneira mais terrível no mundo que ela criou e que, sendo o mundo do
desejo e do tormento, se revela sinistro. É que, tornando-se mundo segundo o
princípio de individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade
esquece a unidade primitiva e, embora, não obstante todo o seu esmigalhamento,
continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em
luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em
cada uma de suas manifestações, procura seu bem-estar, seu "lugar ao sol", a
expensas de outra e, ainda mais, a expensas de todas as outras, não cessando,
pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que
avidamente se devorava a si mesmo. É preciso compreender isso literalmente.
As "Idéias" de Platão adquirem, em Schopenhauer, uma voracidade incurável,
porque, graus atingidos pela vontade que se objetiva, disputam uma à outra a
matéria, o espaço, o tempo. Deve o mundo vegetal servir de alimento ao
mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento a outro, e assim
a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim,
considera o todo como criado para seu uso e contribui por seu lado para
assinalar com a mais espantosa evidência o horror do combate de todos contra
todos, o auto-estraçalhamento da vontade, segundo a máxima "Homo hominis
lupas".
Tôdas as vezes que Schopenhauer evoca o sofrimento do mundo, a
lamentável angústia e a fúria de viver das múltiplas encarnações do querer (ele
trata disso freqüentemente e com minúcias), sua já excepcional eloqüência e
seu gênio de escritor atingem os cimos mais resplandescentes e mais gélidos
de sua perfeição. Fala com uma veemência decidida, com o cunho da
experiência, no tom de quem sabe, de quem com isso se aterroriza e é
arrebatado pela sua verdade potente. Há em certas páginas uma zombaria
sarcástica que ele lança à vida, o olhar faiscante, os lábios apertados,
mesclando-a com citações gregas e latinas; cheio de piedade e sem piedade,
ata ao pelourinho a miséria do mundo, lavra o respectivo certificado, faz-lhe a
conta e presta-lhe contas; aliás, muito longe de esmagar tanto como se deveria
esperar de tal precisão e de tão sombrio talento de expressão, ao contrário,
enche de satisfação estranhamente profunda pelo protesto do espírito pela
revolta humana, que aí se revela num contido tremor de voz. Estia satisfação
todos as experimentam, porque, quando esse homem, ao mesmo tempo
espírito que ajuíza e grande escritor, fala do sofrimento do mundo em geral,
fala também do teu e do meu sofrimento, e nós regozijamos por nos sentirmos
vingados pelo verbo grandioso. Miséria, aflição, preocupação de conservar a
vida, primeiro; depois, quando estas foram penosamente banidas, instinto
sexual, dor de amar, ciúme, inveja, ódio, angústia, ambição, avareza, cupidez,
doença e assim, inesgotavelmente, todos os males oriundos da contradição
interna da vontade surgem da boceta de Pandora. E que resta no fundo? A
esperança? Oh! não, o tédio! Porque todas as existências humanas se
balançam entre a dor a o tédio. A dor ê o elemento positivo; a alegria não é
mais que sua interrupção, um elemento negativo pois, e logo se transforma em
tédio -da mesma forma que a dominante, a que cabe o desenvolvimento
sinuoso da melodia, ou a harmonia, na qual se introduz a desarmonia, se as
prolongássemos sem interrupção, provocariam insuportável tédio. Felicidades
positivas? Há algumas. Mas, comparadas ao longo tormento de nossa cobiça,
ao infinito de nossas exigências, são curtas e mesquinhas e, para um desejo
satisfeito, dez ao menos restam insatisfeitos. Aliás, é só aparente a satisfação,
porque, apenas atendido, um desejo cede o lugar a outro: o primeiro é um erro
reconhecido, o seguinte um erro que não foi ainda. Nenhuma satisfação do
querer que atinge seu objeto pode durar; semelha a esmola que, dada ao
mendigo, prolonga sua lamentável existência de hoje para amanhã.. A felicidade?
Seria o repouso. Mas este é precisamente incompatível com a vontade.
Perseguir, evitar, recear a infelicidade, procurar avidamente o gôzo - tudo se
assemelha; a inquietude causada pelas exigências sempre renascentes da
vontade enche e agita sem demora a consciência e, assim, o sujeito que
sempre quer jaz sob a roda de Ixion, enche incansavelmente o tonel das Danaides
; é Tântalo e a sua sede eterna.
Contudo, pode-se salvar o mundo da miséria., do erro, do engano e da
penitência que é a vida; e a salvação está ao alcance do homem, que realiza a
mais alta e a mais evoluída objetivação da vontade, mas também, por esta
mesma razão, a mais capaz de sofrer e a mais rica de sofrimento. Crê-se que
isso possa ser a morte? Muito falta para tal. A morte pertence inteiramente ao
domínio dos fenômenos e do empírico, à esfera da multiplicidade e da
mudança; nenhum contacto tem com a realidade transcendente e verdadeira.
O que morre conosco é unicamente a individuação; a vontade, que é
vontade de viver e forma o núcleo de nosso ser, não é sequer atingida por ela;
tão demoradamente quanto se afirma a si mesma, poderá sempre encontrar os
caminhos que dão acesso à vida. Resulta daí, digamo-lo de passagem, que o
suicídio é absurdo e imoral, pois nada conserta: o que o indivíduo nega e
suprime, destruindo-se, é unicamente sua individuação, mas não o erro
original, a vontade de viver, que, pelo suicídio, não fez mais que tender para
uma realização mais feliz. A salvação, pois, de maneira alguma se chama
"morte"; liga-se a condição muito diferente. Ninguém imagina a que mediador
devemos eventualmente esta bênção. É à inteligência.
Mas a inteligência não é o produto da vontade, seu instrumento, sua luz na
escuridão, a serva que lhe foi reservada? É assim e assim continua. Nem
sempre, porém, nem em todos os casos. Em circunstâncias particularmente
felizes - oh! pode-se mesmo dizer bem-aventuradas - em circunstâncias
excepcionais por conseqüência, esse criado que é o intelecto, esse pobre servente
pode tornar-se mestre de seu mestre; pode pregar-lhe uma peça,
emancipar-se, tornar-se autônomo e, ao menos durante algum tempo, estabelecer
sobre o mundo sua soberania benfazeja de bondade e de luz, na qual,
despojada de seu poder e de sua influência, a vontade cede à doçura dum
delicioso aniquilamento. Há uni estado em que esse milagre se realiza: o
conhecimento se separa violentamente da vontade, o sujeito deixa de ser um
simples indivíduo, tornando-se, puro e sem vontade, o sujeito do conhecimento.
Chama-se-lhe estado estético. É uma das maiores e mais profundas
experiências de Schopenhauer. Tanto dispõe o filósofo de acentos medonhos
para descrever os tormentos que a dominação do querer acarreta, quanto sua
prosa encontra tons seráficos e sua gratidão transborda e se derrama quando -
e ele o faz com u?na abundância inesgotável - fala nas bênçãos da Arte.
Interpretou esta experiência, uma das mais pessoais talvez de sua vida, e lhe
deu forma como discípulo de Platão e de Kant. Ete definira o belo "o que
apraz de maneira desinteressada". Para Schopenhauer isso significa
acertadamente: sem relação com a vontade. O prazer estético seria puro,
desinteressado, livre do querer; seria "representação", no sentido mais forte e
mais sereno, contemplação clara, imperturbada, cheia de calma. E por que
seria? Aqui, Platão deve vir-lhe em ajuda, Platão e o "esteticismo" latente de
sua doutrina das Idéias. As Idéias! Foram elas que, no estado estético,
tornaram visíveis, através dos fenômenos, essas cópias da eternidade; o olhar
direto que nelas incidisse seria a contemplação objetiva, pura, larga, luminosa
como o sol, da qual só o gênio - e ainda em suas horas e instantes de
genialidade - seria julgado digno e, com êle, quem soubesse acolher e gozai a
obra estética.
Apoio que vê longe, o Deus das Musas, ê um Deus do afastamento e da
distância; não é o da confusão, das "pathos" e da patologia, nem do
sofrimento, mas da liberdade, um Deus objetivo, o Deus da Ironia. Por esta,
como viu Schopenhauer, pela objetividade genial, o conhecimento seria, pois,
arrancado à escravidão da vontade; a atenção deixaria, enfim, de ser
perturbada por qualquer móvel da vontade; nós nos abandonaríamos e as
coisas não seriam mais objetas da vontade, mas simples objetos da
representação: um repouso até então desconhecido ser-nas-ia afinal oferecido.
"Estamos perfeitamente bera .escrevia nosso autor. - Ë o estado sem dor que
Epicuro celebrava como o maior dos bens e como condição dos deuses; nesse
instante, nós nos libertamos da necessidade desprezível de querer, celebramos
o sabbat dos trabalhos forçados da vontade, a roda de Ixion pára".Palavras
célebres, tantas vezes citadas. 0 belo e o alívio imenso que o contemplá-lo
proporciona arrancaram-nas a essa alma amarga e atormentada. Serão
verdadeiras?
Mas que é a verdade? Uma experiência vivida que encontra tais palavras é
verdadeira; justifica-se pela força do sentimento. Dever-se-ia crer, talvez, que
essas palavras dum reconhecimento total e ilimitado foram escritas para
caracterizar uma felicidade relativa e que seria ainda puramente negativa?
Porque, de maneira geral, a felicidade, simples suspensão duma tortura, é
negativa; e não é de outro modo para quem procura a contemplação estética
das Idéias, para a objetividade que acalma o querer, como o provam, aliás,
sem dúvida possível, as imagens que essa felicidade inspira a Schopenhauer.
Também só é efêmera, provisória. 0 estado de artista, julgava ele, a parada
diante duma imagem iluminada pela Idéia, não representaria a salvação
definitiva. 0 estado estético seria apenas uma etapa; deveria levar-nos a estado
mais perfeito, em que a vontade, que no primeiro não havia encontrado mais
que passageira satisfação, seria para sempre submergida pelos raios do
conhecimento, expulsa do terreno e aniquilada. 0 acabamento do artista seria o
santo.
De maneira geral, que é a ética? É a ciência das ações dos homens, a
ciência do bem e do mal. Ciência? A vontade cega, sem razão nem senso,
poderia receber ensinamento? Evidentemente, não se poderia ensinar a
virtude, assim como não se poderia formar um artista explicando-se-lhe o que
constitui o estado estético, nem se poderia levar um homem a praticar o bem e
a evitar o mal com o explicar-se-lhe o sentido e significação de um e outro.
Verdadeiramente nenhuma prescrição havia a fazer à vontade: seria
livre, absoluta e todo-poderosa. A liberdade encontrar-se-ia mesmo unicamente
nela, existiria exclusivamente no transcendente, jamais no empírico,
na objetivação da vontade, que repousaria no espaço, no tempo e na
causalidade, no mundo. Aqui, tudo estaria submetido à inflexível causalidade,
ligado e determinado como causa e efeito; a liberdade encontrar-se-ia para
além das aparências fenomenais, como a vontade, mas lá estaria presente e
com poder absoluto, lá estaria a liberdade da vontade. Como acontece
freqüentemente, a "sã razão humana" enganava-se inteiramente quanto à liberdade,
que não estaria no ato, mas no ser, não no "operari", mas no "esse"; no
ato, é verdade, reinariam, pois, inelutàvelmente a necessidade e o
determinismo, mas o ser continuaria originalmente e metafìsicamente livre.
Certo, o homem que tivesse cometido um ato culposo deveria necessàriamente,
na qualidade de caráter empírico, sob a influência de móveis
determinados, agir assim, mas teria podido ser outro, e mesmo 0 remorso, a
angústia da consciência visariam o ser, não o ato.
Cruel e duro pensamento, insultante, desapiedado, arrogante! Aceitá-lo
repugna ao nosso sentimento, e eis que nosso sentimento apela para sua
mística. A verdade mística, na qual se funda, longe de deixar cair no olvido o
par de conceitos culpa-mérito, ao contrário, equivale a espantoso
aprofundamento. Por isso, é verdade, ambos escapam à esfera moral
concebida em estreito sentido. Mas os espíritos aristocráticos, precisamente os
que não faziam grande caso da "justiça", sempre se inclinaram a privar a
moralidade da culpa e do mérito. Goethe fala complacentemente de "méritos
inatos", o que é uma reunião de palavras deveras absurda do duplo ponto de
vista da lógica e de moral. Porque o "mérito" é inteiramente e por natureza um
conceito moral, e o que é inato, como a beleza, a inteligência, a distinção, o
talento, ou conferindo-lhe o valor do destino, a felicidade, nada disso
logicamente pode ser mérito. Para que aqui se pudesse falar de mérito, fora
preciso que tudo isso fosse resultado de livre escolha, a expressão duma
vontade colocada ante os fenômenos, e é precisamente o que Schopenhauer
afirma quando declara, com dureza aristocrática, que, feliz ou infeliz, cada um
sempre recebe apenas o que lhe é devido.Mas a aristocrática aceitação da
injustiça e da diversidade no destino dos homens não demora a se resolver em
uma igualdade, a mais determinada e a mais democrática de toda.s, pelo
simples fato de que o raciocínio reduz a desigualdade e a diferença e mesmo a
disparidade a uma ilusão. Para designar esta ilusão, serve-se Schopenhauer
dum nome emprestado à sabedoria hindu, que ele admira muito, dada a
concordância dela com a sua própria visão do mundo; chama-a "o véu de
Meia". Mas já muito antes, segunda o costume dos sábios ocidentais, tinha-se
expressado em latim; esta grande ilusão que representa. a injusta desigualdade
das fortunas, dos caracteres, das situações e dos destinos repousa no
"principium individuationis". Diferença e injustiça não são mais do que as
conseqüências que a multiplicidade no seio do tempo e do espaço implica,
mas aquela que não é mais que aparência, 'é a representação que nós, seres
individuais, graças à organização de nossa inteligência, podemos ter dum
mundo que, em sua vera realidade, é a objetivação da vontade de viver una e
única no todo e nas partes, em mim e em ti. Mas aquilo, o indivíduo, que tem
o sentimento de sua unicidade em face do mundo, não o reconhece. . E como
poderia reconhecê-lo se as condições de seu conhecimento, o "véu de Maia",
que envolve seu olhar e o mundo, o impedem de contemplar a verdade? Não
vê ele a essência das coisas, que é una, mas suas aparências fenomenais,
separadas, diferentes, e mais ainda, opostas: alegria e tormento, carrasco e
vítima, vida contente aqui, e ali lamentável. Dizes sim a um, especialmente
por tua própria conta, e repudias ao outro, sobretudo no que te diz respeito. A
vontade, que é tua origem e tua essência, faz-te aspirar à felicidade, às alegrias
e aos prazeres da vida; estendes para ela as mãos, apertaas com força contra
teu peito; e esquece-te de que, admitindo assim a vontade, admites também todos
os tormentos do mundo e os apertas contra ti. 0 que, ao mesmo tempo, tu
fazes de mau, o mal que cometes, tua revolta contra a injustiça da vida, e
também a inveja, a aspiração e o desejo, a tua cobiça do mundo, tudo isso
provém da ilusão da multiplicidade, deste erro, que tu não és o mundo e o
mundo não é tu. Sim, tudo isso vem desta diferença entre "eu" e "tu", que não
é mais que uma ilusão, a ilusão de Maia.Vem daí igualmente teu medo da,
morte. A morte não é mais que a supressão dum erro, dum descaminho,
porque cada individuação é um descaminho. Não é mais que o
desaparecimento duma parede imaginária que separa o resto do mundo o eu,
em que tu te achas encerrado. Crês que, à. tua morte, este resto do mundo
continuará a existir, ao passo que tu - horrível pensamento! - não existirás
mais. Ora, eu te digo: .êste mundo, que é tua representação, não será mais:
mas tu (mais exatamente: aquilo que, em ti, teme a morte, que não a quer,
porque é a vontade de viver), tu permanecerás, viverás, porque a vontade, que
é a tua substância, poderá sempre encontrar o caminho da vida. Não te
pertence toda a eternidade? E com a vida, que para esta não é mais que um
tempo, quando, na verdade, ela é contínua presença, de novo o tempo te será
dado em partilha. À tua vontade está assegurada a vida, com todas as suas
alegrias e todos os seus tormentos, durante o tempo que ela a quiser. Melhor
seria para ti que ela não a quisesse. Esperando, vives tal qual és. Vês e amas,
olhas e desejas, cobiças a imagem que te é estranha, tão estranha, tão outra,
diferente de ti sofres por isso, queres atraí-Ia a ti, em ti, ser ela. Mas ser uma
coisa não é vê-Ia; para isso muito falta; é incomparavelmente mais penoso e
mais lamentável. 0 desejo é um logro causado pela representação. Tu és dado
a ti mesmo, teu corpo te é dado a princípio como representação, assim como
tudo o resto do mundo, mas ao mesmo tempo como vontade, e é a única coisa
no mundo que te foi dada também como vontade. Tudo o mais não é para ti
senão representação. 0 mundo inteiro parece-te um bailado, um espetáculo, ao
qual o teu primeiro e natural julgamento está longe de atribuir tamanha
realidade quanto a ti, o espectador; estás longe de torná-lo tão a sério quanta a
ti, no mesmo grau e com o mesmo sentido. Ao Eu, escravo do princípio de
individuação, envolto no véu de Maia, todos os outros seres aparecem como
máscara e fantasmas, aos quais não está absolutamente em condições de
atribuir uma existência tão importante e tão séria quanto a tua mesma. Só tu
importas, não é? Único ser real. Tu és o centro do mundo, e tudo conspira para
teu bem-estar, para, no máximo possível, afastar de ti os sofrimentos da vida,
para te procurar profusão de felicidades. 0 que aos outros acontece é duma
importância incomparavelmente menor, não te faz bem nem mal.Tal é o ponto
de vista do egoísmo natural, inteiro e inteiramente cego, o aprisionamento sem
remissão no princípio de individuação. Penetrar com o olhar esse princípio,
penetrar por intuição seu caráter enganador, que vela a verdade, pressentir
confusamente que não há diferença entre Eu e Tu, ter o sentimento de que por
tudo e em todos os seres não há mais que uma só e mesma vontade, é o
começo e a essência de toda ética. 0 mau é aquele que, desde que nenhuma
força exterior o impeça, comete o mal, isto é, um homem que não se contenta
com afirmar a vontade de viver tal qual aparece em seu corpo, mas, além
disso, nega a que aparece nos outros e se esforça por aniquilar-lhes a
existência, desde que entrave o caminho aos esforços de sua própria vontade.
No caráter mau exprime-se uma vontade imperiosa, que ultrapassa a afirmação
de seu próprio corpo, mas, sobretudo, uma profunda impotência do
conhecimento para se libertar das aparências assim como do princípio de
individuação, a ponto de se manter duro como o ferro na diferença que este
princípio estabelece entre sua própria pessoa e todas as outras; é precisamente
porque considera a essência das outras inteiramente estranha à sua, separada
dela por um abismo, e porque nelas não vê, no sentido literal da palavra, mais
que máscaras vazias,' atribuindo-se, com a mais profunda convicção, a única
realidade que exista.
A bondade é positiva. Faz obra de amor. Age, assim, por uma razão que
sente profundamente: se não o fizesse, julgar-se-ia semelhante a um homem
que jejuasse hoje a fim de ter amanhã mais do que pode consumir. É
exatamente assim que pensaria o "homem de bem", se deixasse os outros na
indigência, enquanto ele próprio vivesse na abastança. Para ele, o véu de Maia
tornou-se transparente; desapareceu a grande ilusão que dá à vontade dispersa
nos fenômenos a aparência de gozar aqui e sofrer ali, quando é sempre a
mesma vontade e o mesmo tormento que ela causa e sofre ao mesmo tempo. 0
amor e a bondade são compaixão, nascida do conhecimento do "Tat twan asi
", do "Isto, és tu", do gesto que levanta o véu de Maia. Já o dissera Spinoza :
"Benevolentia nihil aliud est, quam cupiditas ex commiseratio orta", "a
bondade não é mais que o amor nascido da compaixão". Mas daí resulta
claramente que, se a justiça se ergue até à vontade, pode esta por sua vez se
alçar ainda, não somente até ao amor mais desinteressado e ao mais generoso
sacrifício, mas na verdade, até à santidade. Porque, quando um homem chegou
a tal conhecimento do amor, considera o sofrimento de tudo que vive como o
seu e se apropria da dor do mundo inteiro. Vê o Todo. a vida, contradição
interna da vontade e sofrimento que não cessa. a humanidade sofredora, a
animalidade sofredora, e o conhecimento da coisa em si torna-se para êle um
alívio do querer. Nele, a vontade se desviara da vida, porque, já que a sua
compaixão refletida o obriga a negá-la, como poderia aprovar ainda.
compreendendo aí a si próprio, o querer viver, de que a vida é a obra, a
expressão e o espelho? A resolução que. chegado a tal compreensão, toma um
homem é a da renúncia, da resignação, da suprema impassibilidade. Nele se
realiza a passagem da virtude para o nobre paradoxo da ascese, um grande paradoxo,
na verdade; porque acontece então que uma individuação da vontade
renega o ser que nela aparece e que se exprime por seu corpo, que seus atos
desmentem sua aparência e entram em luta aberta com ela. 0 asceta recusa-se
a satisfazer o sexo: sua castidade é o signo de que, com a vida desse corpo, a
vontade, de que ele é a manifestação, igualmente se anula. Como definir o
santo? Aquele que não faz nada de tudo que deseja e faz tudo que não deseja.
Ora, a castidade ascética, tornada regra geral, acarretaria o fim da espécie
humana. Mas, dada a estreita ligação de todas as manifestações da vontade, a
mais alta de todas, o homem, em sua queda, arrastará também seu débil
reflexo, a animalidade, e, como assim todo conhecimento se suprimiria, o
mundo inteiro - pois sem sujeito não há objeto - por si mesmo cairia no Nada.
0 homem é, em potência, o salvador da natureza. É por isso que Angelus
Silesius, o místico, exclama
Homem! Todas as coisas te amam e correm para ti:
Tudo corre para ti para chegar a Deus.
Por paradoxal que possa parecer, malgrado toda a sua misantropia e
todas as suas palavras e queixas sobre o estado de corrupção da vida em geral,
como sobre o caráter grotesco do gênio humano em particular, apesar do
desespero que o acabrunha quando vê a miserável companhia em que caímos
pelo fato de termos nascido homens, Schopenhauer tem, no entanto, e culto do
homem, tal como o concebe. Enche-se de altiva veneração humana em
presença deste "coroamento da criação" que, para ele, como para o autor da
Gênese, significa o homem, a mais alta e a mais adiantada objetivação da
vontade. Esta mais importante forma de seu humanisno caminha inteiramente
a par com seu ceticismo político, sua oposição à Revolução, e tacitamente
concorda com eles. Para ele, o homem é venerável, porque é o ser capaz de
conhecer. Certo, todo conhecimento, em princípio, se submete à vontade, pois
dela emerge, como a cabeça do tronco. I: nos animais jamais se pode suprimir
esta sujeição da inteligência. Veja-se, porém, somente a diferença entre o
homem e o animal, no que respeita à situação da cabeça em relação ao tronco.
Nos animais inferiores, ambos se fundem e, em tortos, a cabeça se volta para a
terra, onde se encontrará os objetos do querer; nos próprios animais superiores,
a cabeça e o tronco são ainda muito mais unidos que no homem, em
quem a cabaça (aqui Schopenhauer diz o "chefe" e não a ca beça aparece
superposta livremente a ele e trazida por ele, sem estar a seu serviço. "0 Apelo
de Belvedere representa no mais alto grau es ta superioridade do homem: a
cabeça do Deus das Musas, cujo olhar vai longe, ergue-se tão livremente sobre
os ombros que parece ter-se escapado do corpo e ter-se libertado do cuidado
de servi-lo".
Podem-se fazer mais humanas associações de idéias? Não é em vão
que Schopenhauer vê a dignidade do homem na estátua do Deus das Musas. É
uma visão profunda e particular, unindo a arte, o conhecimento e a dignidade
do sofrimento humano, que se revela nesta imagem; é um humanismo
pessimista que, pois o humanismo tem essencialmente a colaboração dum
otimismo de retórica, representa qualquer coisa inteiramente nova e, ouso
afirmá-lo, uma visão de futuro fecunda no domínio das convicções. No
homem, suprema objetivação da vontade, este humanismo é iluminado pelo
reais claro conhecimento; mas, à medida que o conhecimento atinge maior
nitidez, que a consciência se eleva, também o sofrimento cresce e este, por sua
vez, em graus diferentes segundo os indivíduos; é no homem de gênio que se
eleva mais alto. "0 que determina a hierarquia é a aptidão para sofrer
profundamente" - escreveu Nietzsche, seguindo sem reserva e até o fim o
aristocratismo do sofrimento de Schopenhauer, doutrina segundo a qual a
vocação do homem e do gênio, sua mais alta distinção e seu enobrecimento é
o sofrimento. Resultam desta vocação as duas grandes possibilidades que o
humanismo de Schopenhauer consigna ao homem; chamam-se arte e
santidade. Puramente humana é a possibilidade do estado estético,
contemplação das Idéias libertada da vontade; humana e unicamente humana é
a possibilidade duma redenção definitiva, quando a vontade de viver se nega a
si mesma para se elevar mais alto que o artista, até à santidade ascética. Ao
homem é outorgada a possibilidade da correção, que anula o grande erro e
engano do ser: intuição suprema, que lhe ocorre quando chama a si todo o
sofrimento do mundo e quando pode conduzi-lo à resignação é à inversão da
vontade. Assim, o homem é a esperança secreta do mundo e de todas as
criaturas; é para ele que, por assim dizer, todos os seres correm, cheio, de
confiança; é para ele que todos levam os olhares, como para o seu possível
redentor e salvador.
Concepção de grande beleza mística, em que se exprime um respeito
humano pela, missão do homem, prevalece sobre a. misantropia de Schopenhauer,
sobre todo o seu desgosto dos homens, e os retifica. É o que me
importa: a união do pessimismo e do humanismo, a experiência espiritual, que
revela a Schopenhauer que se pode admitir a um sem excluir ao outro e que se
pode ser pessimista sem necessidade de ser bem falante ou um lisonjeador da
humanidade.
0 que nos põe em guarda, quando tentados a tomar ao pé da letra o
humanismo de Schopenhauer é sua concepção apolínea e clássica da vontade;
o que, antes, no seu caso, como em tantos outros, nos força a estabelecer
distinção entre a opinião e o ser, a não confundir o homem com seus juízos, é
seu "extremismo", a grotesca dualidade, a contradição interna de sua natureza,
que se deve chamar romântica, no sentido mais pitoresco da palavra, e que da
esfera de Goethe o afasta muito mais do que podaria êle ter consciência disso.
Raramente haverá título mais expressivo, mais exaustivo que o de sua
obra-prima, sua obra única no fundo, pois desenvolve seu único pensamento:
porque tudo o mais, tudo o que ele escreveu durante os setenta e dois anos de
sua vida, não foram mais que peças de confirmação obstinadamente reunidas,
arrimos de reforço. "0 mundo como vontade e representação": não é somente
êste pensamento, condensado na, formula mais curta; é também o homem, o
ser humano, a pessoa, a vida, o sofrimento. Nele, os impulsos da vontade,
sobretudo os da sexualidade, devem ter sido particularmente fortes e
perigosos, torturantes como as imagens mitológicas de que se serve para pintar
a escravidão da vontade; sem dúvida, corresponderam elas _à sua violenta necessidade
de conhecimento, à. sua espiritualidade clara e poderosa, mas
opondo-se-lhes de maneira tal que o resultado, caricatural em alto grau, foram
a dualidade radical e terrível e o despedaçamento da experiência, o mais
profundo desejo de salvação, a negação espiritual da própria vida, a acusação
contra seu Eu, mau, errado e culpado. Para Schopenhauer, o sexo é o "foco da
vontade'", em sua objetivação corporal o pólo oposto ao cérebro, que
representa o conhecimento.. Se, visivelmente, tivessem as duas esperas um
poder que de muito ultrapassasse o médio, os únicos beneficiados seriam a
plenitude e a força de sua natureza considerada no totalidade; o que precisamente
faz dele um pessimista e um negador do mundo são unicamente as
relações entre as duas esferas, sua total oposição, que vai até à hostilidade, que
tende à exclusão de uma delas e traz o sofrimento; essa relações, além disso,
não impedem que se chame ao seu pessimismo o produto espiritual da
plenitude e da força, mal compreendida. A dualidade de sua natureza, sensível
aos antagonismos e aos conflitos, atormentada e violenta, fá-lo sentir o mundo
a um tempo como instinto e espírito, paixão e conhecimento, "vontade" e
"representação". Como não descobriu ele em sua arte, em seu gênio, a unidade
deste mundo? Por que não comprendeu ele que o gênio não é de maneira
alguma o silêncio da sensualidade e a ostentação da vontade, de que a arte
seria a objetivação pelo espírito, mas a união e a interpenetração das duas
esferas, união que encanta mais que, isoladamente, o sexo ou o espírito? 0
estado de artista, de criador será, nele mesmo, mais que a sensualidade
espiritualizada e o espírito tornado genial pelo sexo? Goethe viu e viveu tudo
isso muito diferentemente que o pessimista Schopenhauer : de maneira mais
feliz, mais sã, mais serena, "mais clássica", menos patológica - tomada a
palavra não no sentido clínico, mas no espiritual - quero dizer, pois, menos
romântica. Para ele, sexo e espírito, "a idéia e o amor" constituíam o mais
poderoso e o mais nobre encanto da vida, e escrevia: "Porque a vida é o amor,
a vida da vicia, é o espírito". Em Schopenhauer, ao contrário, o crescimento
genial das datas esferas termina no ascetismo. Para ele, o sexo perturba
diabolicamente a contemplarão pura e o conhecimento renega o sexo,
ordenando-lhe: "Se teu olho te escandaliza, arranca-o". Conceber o
conhecimento como a "paz dá alma", a arte como o apaziguamento, como o
estado de contemplação "pura", que salva o homem, salvando-se pelo
aniquilamento da vontade, e o artista comi o esboço do santo, que
definitivamente se alforriou da vontade, tal é a idéia de Schopenhauer. Repitamo-
lo ainda: na medida em que tendi para uma objetividade apolínea, esta
concepção do espírito e da arte se encontra com a de Goethe, apresenta caráter
clássico. Mas seu extremismo e seu ascetismo são nitidamente românticos,
tomada esta palavra em sentido oposto ao do gosto de Goethe, que
conhecemos melhor por suas atitudes a respeito de Kleist.
No fundo, é certo, os termos duma alternativa como "clássico" e
"romântico", não calham a Schopenhauer : nem um nem outro exprime toda
sua alma, que não é contemporânea dos homens para os quais esses conceitos
opostos representavam ainda um papel. Está muito mais perto de nós que os
espíritos que se preocupavam com esta diferença e se classificavam segundo
ela; a forma de espírito de Schopenhauer, a sensibilidade e o ardor excessivos
de seu gênio, cujo dualismo é caricatural, são menos românticos que modernos;
desejaria dizer muito com esta designação, mas relacionando-a totalmente
com uma alma moderna, cujo calvário só é bastante visível neste século entre
Goethe e Nietzsche. Dêsse ponto de vista, Schopenhauer toma lugar entre um
e outro: mais moderno, mais doloroso, mais complicado que Goethe, mas
muito mais "clássicos", mais robusto, mais são que Nietzsche, ele operou a
transição; pode-se, pois, deduzir daí que o otimismo e o pessimismo, a
afirmação ou a negação da vida nada têm a ver com a saúde e a doença. A saúde
e a doença, se as considerarmos como juízo de valor, só com muita
precaução podem ser aplicadas à espiritualidade humana, porque são conceitos
biológicos e a natureza do homem não se reduz ao biológico.
Schopenhauer, psicólogo da vontade, é o pai de toda a psicologia
moderna, dele se vai, pelo radicalismo psicológico de Nietzsche, em linha reta
a Freud, assim como àqueles que concluíram sua psicologia do inconsciente e
a aplicaram às ciências do espírito. -O antüntelectualismo e n anti-socratismo
de Nietzsche não são mais que a afirmação filosófica e a glorificação do
primado da vontade, descoberta por Schopenhauer e da intuição pessimista
que o fez designar um lugar secundário à inteligência, serva da vontade. Esta
intuição, esta verificação - que não é precisamente humana no sentido clássico
- de que a inteligência está simplesmente às ordens da vontade, para provê-Ia
de motivos, freqüentemente muito pouco fundados e falaciosos para racionalizar
os instintos, contém uma psicologia cética e pessimista, uma ciência da
alma impiedosarnente lúcida que não somente preparou os caminhos ao que
chamamos psicanálise, como já é esta própria psicanálise. No fundo, toda
psicologia desmascara; é o olhar penetrante, irônico do naturalista, que penetra
as relações enganadoras do espírito e do instinto. Isso corresponde perfeitamente
à conivência mística da natureza nas Afinidades eletivas, em que
Goethe .faz Eduardo dizer, já enamorado, após seu primeiro encontre com
Odila : "Ela tem muito espírito", e sua mulher lhe responde: "Muito espírito?
Mas ela não abriu a bôca!" Schopenhauer por certo gostou desta passagem. É
uma amável ilustração, ainda classicamente serena, da frase em que declara
que a gente não quer uma coisa porque a reconhece boa, mas que se julga boa
porque se quer.
A verdadeira razão que nos faz hoje retomar Schopenhauer e examinar
sua concepção do mundo, o motivo que nos leva a evocar sua fisionomia
espiritual, com tudo que ela lembra, diante de uma geração que não sabe
grande coisa. dele, são as relações do pessimismo e da humanidade. É o desejo
de transmitir aos homens do tempo presente, nos quais o sentimento de
humanidade atravessa grave crise, a experiência pessoal da união particular
contraída pela melancolia e pela altivez do home mnesta filosofia. 0
pessimismo de Schopenhauer é sua humanidade. Sua explicação do mundo
pela vontade, sua intuição da onipotência dos instintos, o rebaixamento da razão
outrora divina, do espírito, da inteligência, reduzida a não ser mais que o
instrumento da vida que quer afirmar-se, tudo isso é anticlássico e, em
essência, inumano. Mas sua humanidade, sua espiritualidade residem
precisamente no matiz pessimista de sua doutrina, que o leva a renegar o
mundo e a pregar um ideal ascético; no fato de que êsse grande escritor,
versado em sofrimento, cuja prosa é a da grande época de nossa civilização
humanista, tirou o homem do elemento biológico e da natureza, fez de sua
alma, que sente e conhece, o teatro da inversão do querer e viu nele o salvador
possível de todas as criaturas.
Em seu primeiro terço, o século XIX foi uma reação total contra o
racionalismo e o intelectualismo clássicos; comprovou-se numa admiração do
inconsciente, numa glorificação de instinto, que julgava dever à "vida" e que
somente preparou assaz, para os, instintos maus, dias felizes... Freqüentemente
o pessimismo consciente se mudou então em prazer de prejudicar, o reconhecimento
de verdades amargas pelo espírita transformou-se em ódio e em
despreza do próprio espírito e, sem a menor generosidade a seu respeito, a
gente se pôs do lado da vida, isto é, do lado do mais forte; porque, se uma
coisa é certa e provada, é exatamente esse fato de nada ter a vida a temer do
espírito, e do conhecimento e que, na terra, o espírito. não a vida, tem o mínimo
de força e a maior necessidade de proteção. Mas a própria
anti-humanidade atual é, afinal, uma experiência humana, uma resposta unilateral
aos eternos problemas da essência e destino do homem. Visivelmente
ela precisa dum corretivo que restabeleça o equilíbrio, e eu creio que a
filosofia evocada aqui pode hoje prestar bons serviços. Chamei Schopenhauer
de “moderno"; deveria ter dito "futuro". Os elementos que compõem sua
personalidade, sua harmonia claro-escura, a mistura de Voltaire e de Jacó
Bõhme, o paradoxo de sua prosa clássica e clara, que revela o mais profundo,
o mais noturno abismo, sua altiva misantropia, que jamais renega seu respeito
pela idéia do homem, em suma, o que eu chamei sua humanidade pessimista,
apareceme rico de futuro e promete talvez, à sua construção teórica, que
esteve na moda e foi célebre, caindo depois em semi-esquecimento, uma ação
nova, profunda e fecunda, sobre os homens. Sua sensualidade espiritual, sua
doutrina - que era vida - segundo a qual conhecimento, pensamento, filosofia
não são apenas ocupação de cabeça, mas do homem inteiro - coração e
sentidos, corpo e alma - em uma palavra, o que dele faz um artista, tudo isso
pode ajudar a produzir-se uma humanidade que ultrapassa a aridez da razão e
deificação do instinto. Porque sempre, companheiro do homem na jornada que
penosamente o conduz a si mesmo, a arte atinge primeiro o objetivo.
Fonte: Cultvox – Os melhores e-livros da Internet
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