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domingo, novembro 25, 2007

SCHOPENHAUER*

Thomas Mann
*Texto escrito em português clássico
NOSSA alegria diante dum sistema metafisico, nossa satisfação em
presença duma construção do pensamento, em que a organização espiritual do
mundo se mostra num conjunto lógico, coerente a harmônico, sempre
dependem eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que
a alta satisfação, sempre serena afinal, que a atividade artística nos
proporciona quando cria a ordem e a forma a nos permite abranger com a vista
o caos da vida, dando-lhe transparência.
A verdade e a beleza devem ser postas em relação; tomadas em si
mesmas, sem o apoio que mútuamente se prestam, são valores mui instáveis.
A beleza que não se fundasse na verdade, que não pudesse apelar para ela, que
não nascesse dela a não vivesse graças a ela, seria pura quimera - e "que é a
verdade"? Tirados dum mundo de fenômenos, duma visão do mundo
submetida a múltiplas condições, nossos conceitos, como o discerne e o
reconhece a filosofia crítica, não são para use transcendente mas só imanente;
esse material de nosso pensamento e, com maior razão, os juízos que nos
permite construir, não são meios adequados para quem quer apreender a
própria essência das coisas e a verdadeira conexão do mundo a da existência.
Mesmo que, por uma experiência intimamente vivida, se determine mais
convencida a mais convincentemente o que está na base dos fenômenos ainda
não se terá trazido à luz a raiz das coisas. Só isto encoraja o espírito humano a
tentar este ensaio, que se lhe impõe a isto o justifica; é a hipótese necessária de
que também o nosso próprio ser, o nosso mais profundo Eu, é um elemento
desse "substractum" do mundo, que aí deve ter raízes e que, por conseguinte,
dele talvez se tirem alguns dados que permitam esclarecer a ligação do mundo
dos fenômenos a da essência verdadeira das coisas.
A história do pensamento de Schopenhauer faz-nos remontar à fonte do
conhecimento em que se abeberou o Ocidente, onde o espírito científico tanto
quanto o senso artístico da Europa têm origem a onde se encontram ainda
unidos: ela conduz a Platão. As coisas do mundo, ensinava o pensador grego,
não têm existência verdadeira; sempre em "devenir", jamais são. Não valem
como objetos do verdadeiro conhecimento, pois só existe conhecimento que é
em si, por si a sem mudança; ora, em sua multiplicidade a na relatividade de
seu ser de empréstimo, que bem se poderia chamar um não-ser, jamais podem
ser senão o objeto duma opinião provocada. por uma sensação. São sombras.
O que só é verdadeiramente, o que não cessa de ser, sem jamais se transformar
nem se perder, são os arquétipos, realidades a que essas sombras
correspondem, são as Idéias eternas, os protótipos de todas as coisas. Ignoram
estes a multiplicidade, porque, por essência, cada um deles é único, é precisamente
o original, cujas cópias ou sombras não são mais que coisas ostentando
o mesmo nome que ele, coisas isoladas, perecíveis e semelhantes. As idéias
não poderiam nascer nem desaparecer com êles, porque são intemporais e
verdadeiramente "existentes". Para elas não há "devenir" nem aniquilamento,
como para suas cópias caducas. Só delas, pois, há um conhecimento verdadeiro,
como do que, em todos os tempos e de todos os pontos de vista, é.
Ter espírito científico e preparar-se para a ciência é manifestamente
subordinar à idéia a multiplicidade dos fenômenos, combinar somente com ela
a verdade e a autêntica realidade e firmemente se ater à abstração
contemplativa, à espiritualização do conhecimento. Por esta distinção de valor
entre o fenômeno e a idéia, a matéria e o espírito, o mundo da aparência e o
mundo da verdade, o temporal e o eterno, Platão representa um acontecimento
prodigioso na história do espírito humano e, pois, na ordem da ciência e da
moral.
Sentem todos que a esta elevação da idéia, realidade única, acima dos
fenômenos e da sua efêmera multiplicidade, se liga uma idéia profundamente
moral, a desvalorização do sensível em benefício do espiritual, do temporal
em proveito do eterno, e isto está inteiramente no espírito do futuro
cristianismo: porque, por assim dizer, o passageiro fenômeno e a afeição
sensual que inspira, com isso se transportam para o domínio do pecado: - só
aquele que se volta para o eterno encontra a salvação, a verdade. Vista sob
esse aspecto, a filosofia de Platão mostra o parentesco e a aliança entre a
ciência e o ascetismo moral.
Mas outro valor tem esta distinção: o valor artístico. De acordo com essa
doutrina, com efeito, o tempo ê simplesmente esta visão recortada e
fragmentada que um ser individual pode ter Idéias, as quais, situadas fora do
tempo, são eternas. "O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a
imagem móvel da eternidade". Com isso, essa doutrina pré-cristã e já cristã
apresenta-nos também, em sua ascética sabedoria, um atrativo, um encanto de
sensualidade infinitamente artística. Com efeito, conceber o mundo como uma
fantasmagoria. multicor e móbil de imagens que deixam transparecer a Idéia,
o Espírito, é atitude eminentemente artística, que, por assim dizer, de pronto
restitui o artista a si mesmo. Na verdade, é ele quem, pleno de alegria sensual
e pecaminosa, pode sentir-se preso aos fenômenos do mundo, às imagens do
mundo, pois sabe que pertence ao mesmo tempo ao mundo da Idéia e do
Espírito, porque é o Mago, graças ao qual podem estes nos aparecer através
dos fenômenos. Surge aqui a missão mediatária do artista, seu papel de
mediador nas encantações herméticas entre o mundo do alto e o mundo de
baixo, entre a Idéia e o fenômeno, o espírito e a sensualidade; porque tal é, de
fato, a posição verdadeiramente cósmica da arte; sua estranha situação e a
comprometida. dignidade de sua ação no mundo não podem definir-se nem
explicar-se de outra maneira. O símbolo da lua, este emblema cósmico de toda
mediação, é próprio da arte.
Platão artista... Uma filosofia, não o esqueçamos, não age somente - e por
vezes age muito pouco - por sua moral, pela doutrina tio sabedoria que põe na
sua interpretação e na sua experiência do mundo, mas também e sobretudo por
esta própria experiência que, aliás, constitui a parte essencial, primeira e
pessoal duma filosofia - e que não é absolutamente um simples acréscimo
intelectual e moral à doutrina de salvação e de verdade. Muito resta ainda
quando se arrancou dum filósofo sua filosofia e grave seria se nada restasse.
Nietzsche, o discípulo de Schopenhauer, que renegou seu mestre em espírito,
escreveu sobre ele estes versos:
O que ele ensinou não mais existe, O que ele viveu permanece de pé,
Contemplai-o, pois! Nada pôde submetê-lo.
A doutrina de Schopenhauer, de que falaremos agora, e o dinamismo de
sua verdade têm-se prestado a tantos abusos como a mensagem de Platão, a
qual, não obstante seu ascetismo científico, pôde ser amoedada em valores de
arte e especialmente ser explorada por um artista de colossal talento, Ricardo
Wagner (de quem talvez tratemos mais tarde). Mas a culpa não cabe
certamente ao outro mestre e iniciador de Schopenhauer, àquele que o ajudou
a construir seu sistema de pensamento: Kant, puro espírito, cuja natureza tanto
o afastava da arte quanto o dispunha à crítica.
Emanuel Kant, crítico do conhecimento, que, do domínio da especulação,
onde seu vôo a extraviara, reconduziu a .filosofia. para o espírito humano,
tomou-o por objeto de suas investigações e traçou limites à razão; Kant, na
segunda metade do século XVIII, ensinava em Kõnigsberg, na Prússia,
princípios mui semelhantes aos que dois milênios antes o pensador ateniense
havia exposto. Toda a nossa experiência do mundo -dizia ele - está submetida
a três leis e condições que são as "formas em que necessariamente se elabora
todo o nosso conhecimento. Chamam-se tempo, espaço, causalidade. Mas não
apreendem o mundo tal como ele pode ser em si e por si, independentemente
de nosso esforço por percebê-lo, a "coisa em si"; atêm-se somente à sua
aparência fenomenal, porque não são mais que as formas de nosso
conhecimento. Nenhuma, multiplicidade, nenhuma aparição e desaparição é
possível senão por elas três; elas são, pois, sustentadas unicamente pela
aparência e absolutamente nada podem saber da "coisa em si", à qual não se
poderia de maneira alguma aplicá-las. Isso se estende mesmo até ao nosso
próprio Eu: conhecemo-lo somente como aparência, não em sua essência. Em
outros termos: espaço, tempo, causalidade, são dispositivos de nossa inteligência,
e a concepção das coisas que nos chega em imagem, condicionada por
eles, se chama, pois imanente; transcendente seria a que poderíamos atingir se
a razão, voltando-se sobre si mesma, se tornasse crítica da razão, depois de ter
peneirado o caráter de meros modos de conhecimento que essas três formas
interpostas têm''.
Tal é a concepção fundamental de Kant. Vê-se que muito se aproxima da
de Platão. Apresentam ambas o mundo visível como uma aparência, isto é,
como uma parição inconsistente, que só adquire importância e alguma
realidade pelo que nela transparece e se exprime. Para ambas, a verdadeira
realidade se encontra acima, atrás, em resumo, "para além" de sua aparência e
pouco importa, em suma, que se chame "Idéia" ou "Coisa em si".
Schopenhauer abrigava esses dois conceitos no mais profundo de seu pensamento.
Com predileção, cedo estudou Platão e Kant (em Gottingem
1809-1811). A todos os pensadores preferia esses dois, tão afastados no.
espaço e no tempo. Tomou-lhes emprestado o que podia ser-lhe útil e, para o
seu temperamento tradicionalista, foi grande satisfação poder utilizá-lo tão
perfeitamente; mas, transformou-o totalmente, conforme a sua própria
natureza, que era inteiramente diferente, muito mais moderna, mais impetuosa
e mais dolorosa.
Tomou as "Idéias" e a "Coisa em si". Mas, com esta, ousou temerária
tentativa, quase interdita, cuja necessidade, porém, sentia, profundamente,
com o ardor de possante convicção: definiu-a, chamou-a por seu nome,
afirmou -posto que após Kant fosse impossível saber qualquer coisa a respeito
- que sabia o que ela é : a Vontade. Seria a causa primeira e ir redutível do ser,
sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e
operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a
vida, porque seria o querer-viver. Ela o seria a ponto que dizer "vontade" seria
falar precisamente da vontade de vida e servir-se da fórmula mais explícita,
enunciar de fato um pleonasmo. Jamais a vontade quereria outra coisa senão a
vida. E por que a quereria? Por que a achasse desejável? Por que tal era o
resultado de alguma investigação objetiva sobre o valor da vida? Oh? Não! A
esse querer, qualquer conhecimento continuaria a ser perfeitamente estranho;
seria algo que não dependeria absolutamente dela, algo de primordial e de
incondicionado, um impulso cego, um instinto absolutamente gratuito, duma
profundeza sem fundo e dependeria tampouco de quaisquer juízos sobre o
valor da vida que, ao contrário, seriam estes juízos que dependeriam inteiramente
do grau de potência do querer-viver.
A vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à
causalidade, cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu
desejo e de sua alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta
objetivação se realizaria de tal maneira que sua unidade primitiva se tornaria
multiplicidade, o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação.
Para saciar seu desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse
princípio, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo
dos fenômenos, o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais
isolado desses fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da
vontade, sua objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso ainda: seria
representação, minha representação, como a tua, a de todo indivíduo e a
representação que cada qual faz de si para si - especialmente por meios da
inteligência que conhece e que, nos graus superiores de sua objetivação, a
vontade criou para torná-la para si - especialmente por meios da inteligência
que produziria a vontade, mas, ao inverso, esta que engendraria aquela. Não
seriam a inteligência, o espírito, a faculdade de conhecer, que constituiriam o
elemento primeiro e dominador; seria a vontade, e a inteligência, sua serva.
Seria possível o contrário, urna vez que a própria faculdade de conhecer se
liga à objetivação da vontade nos graus superiores e que, sem ela, não teria
nenhuma ocasião de se realizar? Num mundo que é inteiramente obra da
vontade, do instinto de viver absoluto, gratuito, ignorando razões e juízos de
valor, não poderia a inteligência necessariamente pretender senão segundo lugar.
A sensibilidade, os nervos, o cérebro, tanto como outras partes do
organismo - em particular. da mesma maneira que o oposto do cérebro, órgão
de conhecimento, seu pólo contrário.- o aparelho sexual - seriam a expressão
da vontade num dado momento de sua objetivação e a representação
resultante, igualmente destinada a seu serviço, não teria mais seu fim em si,
mas constituiria um simples meio, um instrumento, que pertmitiria à vontade
atender a seus fins, exatamente como esses outros órgãos. Essas relações da
inteligência e da vontade, essa afirmação de Schopenhauer de que a primeira
era apenas o dócil instrumento da segunda implicam muito de cômico e de
humilhante angústia; determinam o conteúdo de todas as inclinações e
aptidões do homem para se iludir e imaginar que sua vontade recebe
instruções e dados da inteligência, ao passo que, segundo o nosso filósofo, é
precisamente o contrário; a inteligência - independentemente de sua tarefa,
que consiste em projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e
em ajudá-la em sua luta pela existência num grau mais elevado - tem por única
missão servir de porta-voz à vontade, justificá-la, provê-la de motivos
"morais", em suma, racionalizar nossos instintos.
Era uma apreciação notavelmente pessimista; e, de fato, todos os
compêndios nos ensinam que Schopenhauer foi em primeiro lugar o filósofo
da vontade e, em segundo lugar, o do pessimismo. Mas, não há primeiro nem
segundo; as duas coisas não são mais que uma: ê1e foi a segunda, porque foi a
outra e ao mesmo tempo; ele foi necessariamente pessimista, porque era o
filósofo e o psicólogo da vontade. Se a encaramos como o oposto da satisfação
beata, a vontade é em si mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação,
esforço em vista de algo, inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento,
e um mundo da vontade outra coisa não pode ser senão o mundo do
sofrimento. Objetivando-se em tudo que existe, a vontade expia no mundo
físico sua alegria metafísica e a, expia no senti 'o próprio da palavra: "expia"
da maneira mais terrível no mundo que ela criou e que, sendo o mundo do
desejo e do tormento, se revela sinistro. É que, tornando-se mundo segundo o
princípio de individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade
esquece a unidade primitiva e, embora, não obstante todo o seu esmigalhamento,
continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em
luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em
cada uma de suas manifestações, procura seu bem-estar, seu "lugar ao sol", a
expensas de outra e, ainda mais, a expensas de todas as outras, não cessando,
pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que
avidamente se devorava a si mesmo. É preciso compreender isso literalmente.
As "Idéias" de Platão adquirem, em Schopenhauer, uma voracidade incurável,
porque, graus atingidos pela vontade que se objetiva, disputam uma à outra a
matéria, o espaço, o tempo. Deve o mundo vegetal servir de alimento ao
mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento a outro, e assim
a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim,
considera o todo como criado para seu uso e contribui por seu lado para
assinalar com a mais espantosa evidência o horror do combate de todos contra
todos, o auto-estraçalhamento da vontade, segundo a máxima "Homo hominis
lupas".
Tôdas as vezes que Schopenhauer evoca o sofrimento do mundo, a
lamentável angústia e a fúria de viver das múltiplas encarnações do querer (ele
trata disso freqüentemente e com minúcias), sua já excepcional eloqüência e
seu gênio de escritor atingem os cimos mais resplandescentes e mais gélidos
de sua perfeição. Fala com uma veemência decidida, com o cunho da
experiência, no tom de quem sabe, de quem com isso se aterroriza e é
arrebatado pela sua verdade potente. Há em certas páginas uma zombaria
sarcástica que ele lança à vida, o olhar faiscante, os lábios apertados,
mesclando-a com citações gregas e latinas; cheio de piedade e sem piedade,
ata ao pelourinho a miséria do mundo, lavra o respectivo certificado, faz-lhe a
conta e presta-lhe contas; aliás, muito longe de esmagar tanto como se deveria
esperar de tal precisão e de tão sombrio talento de expressão, ao contrário,
enche de satisfação estranhamente profunda pelo protesto do espírito pela
revolta humana, que aí se revela num contido tremor de voz. Estia satisfação
todos as experimentam, porque, quando esse homem, ao mesmo tempo
espírito que ajuíza e grande escritor, fala do sofrimento do mundo em geral,
fala também do teu e do meu sofrimento, e nós regozijamos por nos sentirmos
vingados pelo verbo grandioso. Miséria, aflição, preocupação de conservar a
vida, primeiro; depois, quando estas foram penosamente banidas, instinto
sexual, dor de amar, ciúme, inveja, ódio, angústia, ambição, avareza, cupidez,
doença e assim, inesgotavelmente, todos os males oriundos da contradição
interna da vontade surgem da boceta de Pandora. E que resta no fundo? A
esperança? Oh! não, o tédio! Porque todas as existências humanas se
balançam entre a dor a o tédio. A dor ê o elemento positivo; a alegria não é
mais que sua interrupção, um elemento negativo pois, e logo se transforma em
tédio -da mesma forma que a dominante, a que cabe o desenvolvimento
sinuoso da melodia, ou a harmonia, na qual se introduz a desarmonia, se as
prolongássemos sem interrupção, provocariam insuportável tédio. Felicidades
positivas? Há algumas. Mas, comparadas ao longo tormento de nossa cobiça,
ao infinito de nossas exigências, são curtas e mesquinhas e, para um desejo
satisfeito, dez ao menos restam insatisfeitos. Aliás, é só aparente a satisfação,
porque, apenas atendido, um desejo cede o lugar a outro: o primeiro é um erro
reconhecido, o seguinte um erro que não foi ainda. Nenhuma satisfação do
querer que atinge seu objeto pode durar; semelha a esmola que, dada ao
mendigo, prolonga sua lamentável existência de hoje para amanhã.. A felicidade?
Seria o repouso. Mas este é precisamente incompatível com a vontade.
Perseguir, evitar, recear a infelicidade, procurar avidamente o gôzo - tudo se
assemelha; a inquietude causada pelas exigências sempre renascentes da
vontade enche e agita sem demora a consciência e, assim, o sujeito que
sempre quer jaz sob a roda de Ixion, enche incansavelmente o tonel das Danaides
; é Tântalo e a sua sede eterna.
Contudo, pode-se salvar o mundo da miséria., do erro, do engano e da
penitência que é a vida; e a salvação está ao alcance do homem, que realiza a
mais alta e a mais evoluída objetivação da vontade, mas também, por esta
mesma razão, a mais capaz de sofrer e a mais rica de sofrimento. Crê-se que
isso possa ser a morte? Muito falta para tal. A morte pertence inteiramente ao
domínio dos fenômenos e do empírico, à esfera da multiplicidade e da
mudança; nenhum contacto tem com a realidade transcendente e verdadeira.
O que morre conosco é unicamente a individuação; a vontade, que é
vontade de viver e forma o núcleo de nosso ser, não é sequer atingida por ela;
tão demoradamente quanto se afirma a si mesma, poderá sempre encontrar os
caminhos que dão acesso à vida. Resulta daí, digamo-lo de passagem, que o
suicídio é absurdo e imoral, pois nada conserta: o que o indivíduo nega e
suprime, destruindo-se, é unicamente sua individuação, mas não o erro
original, a vontade de viver, que, pelo suicídio, não fez mais que tender para
uma realização mais feliz. A salvação, pois, de maneira alguma se chama
"morte"; liga-se a condição muito diferente. Ninguém imagina a que mediador
devemos eventualmente esta bênção. É à inteligência.
Mas a inteligência não é o produto da vontade, seu instrumento, sua luz na
escuridão, a serva que lhe foi reservada? É assim e assim continua. Nem
sempre, porém, nem em todos os casos. Em circunstâncias particularmente
felizes - oh! pode-se mesmo dizer bem-aventuradas - em circunstâncias
excepcionais por conseqüência, esse criado que é o intelecto, esse pobre servente
pode tornar-se mestre de seu mestre; pode pregar-lhe uma peça,
emancipar-se, tornar-se autônomo e, ao menos durante algum tempo, estabelecer
sobre o mundo sua soberania benfazeja de bondade e de luz, na qual,
despojada de seu poder e de sua influência, a vontade cede à doçura dum
delicioso aniquilamento. Há uni estado em que esse milagre se realiza: o
conhecimento se separa violentamente da vontade, o sujeito deixa de ser um
simples indivíduo, tornando-se, puro e sem vontade, o sujeito do conhecimento.
Chama-se-lhe estado estético. É uma das maiores e mais profundas
experiências de Schopenhauer. Tanto dispõe o filósofo de acentos medonhos
para descrever os tormentos que a dominação do querer acarreta, quanto sua
prosa encontra tons seráficos e sua gratidão transborda e se derrama quando -
e ele o faz com u?na abundância inesgotável - fala nas bênçãos da Arte.
Interpretou esta experiência, uma das mais pessoais talvez de sua vida, e lhe
deu forma como discípulo de Platão e de Kant. Ete definira o belo "o que
apraz de maneira desinteressada". Para Schopenhauer isso significa
acertadamente: sem relação com a vontade. O prazer estético seria puro,
desinteressado, livre do querer; seria "representação", no sentido mais forte e
mais sereno, contemplação clara, imperturbada, cheia de calma. E por que
seria? Aqui, Platão deve vir-lhe em ajuda, Platão e o "esteticismo" latente de
sua doutrina das Idéias. As Idéias! Foram elas que, no estado estético,
tornaram visíveis, através dos fenômenos, essas cópias da eternidade; o olhar
direto que nelas incidisse seria a contemplação objetiva, pura, larga, luminosa
como o sol, da qual só o gênio - e ainda em suas horas e instantes de
genialidade - seria julgado digno e, com êle, quem soubesse acolher e gozai a
obra estética.
Apoio que vê longe, o Deus das Musas, ê um Deus do afastamento e da
distância; não é o da confusão, das "pathos" e da patologia, nem do
sofrimento, mas da liberdade, um Deus objetivo, o Deus da Ironia. Por esta,
como viu Schopenhauer, pela objetividade genial, o conhecimento seria, pois,
arrancado à escravidão da vontade; a atenção deixaria, enfim, de ser
perturbada por qualquer móvel da vontade; nós nos abandonaríamos e as
coisas não seriam mais objetas da vontade, mas simples objetos da
representação: um repouso até então desconhecido ser-nas-ia afinal oferecido.
"Estamos perfeitamente bera .escrevia nosso autor. - Ë o estado sem dor que
Epicuro celebrava como o maior dos bens e como condição dos deuses; nesse
instante, nós nos libertamos da necessidade desprezível de querer, celebramos
o sabbat dos trabalhos forçados da vontade, a roda de Ixion pára".Palavras
célebres, tantas vezes citadas. 0 belo e o alívio imenso que o contemplá-lo
proporciona arrancaram-nas a essa alma amarga e atormentada. Serão
verdadeiras?
Mas que é a verdade? Uma experiência vivida que encontra tais palavras é
verdadeira; justifica-se pela força do sentimento. Dever-se-ia crer, talvez, que
essas palavras dum reconhecimento total e ilimitado foram escritas para
caracterizar uma felicidade relativa e que seria ainda puramente negativa?
Porque, de maneira geral, a felicidade, simples suspensão duma tortura, é
negativa; e não é de outro modo para quem procura a contemplação estética
das Idéias, para a objetividade que acalma o querer, como o provam, aliás,
sem dúvida possível, as imagens que essa felicidade inspira a Schopenhauer.
Também só é efêmera, provisória. 0 estado de artista, julgava ele, a parada
diante duma imagem iluminada pela Idéia, não representaria a salvação
definitiva. 0 estado estético seria apenas uma etapa; deveria levar-nos a estado
mais perfeito, em que a vontade, que no primeiro não havia encontrado mais
que passageira satisfação, seria para sempre submergida pelos raios do
conhecimento, expulsa do terreno e aniquilada. 0 acabamento do artista seria o
santo.
De maneira geral, que é a ética? É a ciência das ações dos homens, a
ciência do bem e do mal. Ciência? A vontade cega, sem razão nem senso,
poderia receber ensinamento? Evidentemente, não se poderia ensinar a
virtude, assim como não se poderia formar um artista explicando-se-lhe o que
constitui o estado estético, nem se poderia levar um homem a praticar o bem e
a evitar o mal com o explicar-se-lhe o sentido e significação de um e outro.
Verdadeiramente nenhuma prescrição havia a fazer à vontade: seria
livre, absoluta e todo-poderosa. A liberdade encontrar-se-ia mesmo unicamente
nela, existiria exclusivamente no transcendente, jamais no empírico,
na objetivação da vontade, que repousaria no espaço, no tempo e na
causalidade, no mundo. Aqui, tudo estaria submetido à inflexível causalidade,
ligado e determinado como causa e efeito; a liberdade encontrar-se-ia para
além das aparências fenomenais, como a vontade, mas lá estaria presente e
com poder absoluto, lá estaria a liberdade da vontade. Como acontece
freqüentemente, a "sã razão humana" enganava-se inteiramente quanto à liberdade,
que não estaria no ato, mas no ser, não no "operari", mas no "esse"; no
ato, é verdade, reinariam, pois, inelutàvelmente a necessidade e o
determinismo, mas o ser continuaria originalmente e metafìsicamente livre.
Certo, o homem que tivesse cometido um ato culposo deveria necessàriamente,
na qualidade de caráter empírico, sob a influência de móveis
determinados, agir assim, mas teria podido ser outro, e mesmo 0 remorso, a
angústia da consciência visariam o ser, não o ato.
Cruel e duro pensamento, insultante, desapiedado, arrogante! Aceitá-lo
repugna ao nosso sentimento, e eis que nosso sentimento apela para sua
mística. A verdade mística, na qual se funda, longe de deixar cair no olvido o
par de conceitos culpa-mérito, ao contrário, equivale a espantoso
aprofundamento. Por isso, é verdade, ambos escapam à esfera moral
concebida em estreito sentido. Mas os espíritos aristocráticos, precisamente os
que não faziam grande caso da "justiça", sempre se inclinaram a privar a
moralidade da culpa e do mérito. Goethe fala complacentemente de "méritos
inatos", o que é uma reunião de palavras deveras absurda do duplo ponto de
vista da lógica e de moral. Porque o "mérito" é inteiramente e por natureza um
conceito moral, e o que é inato, como a beleza, a inteligência, a distinção, o
talento, ou conferindo-lhe o valor do destino, a felicidade, nada disso
logicamente pode ser mérito. Para que aqui se pudesse falar de mérito, fora
preciso que tudo isso fosse resultado de livre escolha, a expressão duma
vontade colocada ante os fenômenos, e é precisamente o que Schopenhauer
afirma quando declara, com dureza aristocrática, que, feliz ou infeliz, cada um
sempre recebe apenas o que lhe é devido.Mas a aristocrática aceitação da
injustiça e da diversidade no destino dos homens não demora a se resolver em
uma igualdade, a mais determinada e a mais democrática de toda.s, pelo
simples fato de que o raciocínio reduz a desigualdade e a diferença e mesmo a
disparidade a uma ilusão. Para designar esta ilusão, serve-se Schopenhauer
dum nome emprestado à sabedoria hindu, que ele admira muito, dada a
concordância dela com a sua própria visão do mundo; chama-a "o véu de
Meia". Mas já muito antes, segunda o costume dos sábios ocidentais, tinha-se
expressado em latim; esta grande ilusão que representa. a injusta desigualdade
das fortunas, dos caracteres, das situações e dos destinos repousa no
"principium individuationis". Diferença e injustiça não são mais do que as
conseqüências que a multiplicidade no seio do tempo e do espaço implica,
mas aquela que não é mais que aparência, 'é a representação que nós, seres
individuais, graças à organização de nossa inteligência, podemos ter dum
mundo que, em sua vera realidade, é a objetivação da vontade de viver una e
única no todo e nas partes, em mim e em ti. Mas aquilo, o indivíduo, que tem
o sentimento de sua unicidade em face do mundo, não o reconhece. . E como
poderia reconhecê-lo se as condições de seu conhecimento, o "véu de Maia",
que envolve seu olhar e o mundo, o impedem de contemplar a verdade? Não
vê ele a essência das coisas, que é una, mas suas aparências fenomenais,
separadas, diferentes, e mais ainda, opostas: alegria e tormento, carrasco e
vítima, vida contente aqui, e ali lamentável. Dizes sim a um, especialmente
por tua própria conta, e repudias ao outro, sobretudo no que te diz respeito. A
vontade, que é tua origem e tua essência, faz-te aspirar à felicidade, às alegrias
e aos prazeres da vida; estendes para ela as mãos, apertaas com força contra
teu peito; e esquece-te de que, admitindo assim a vontade, admites também todos
os tormentos do mundo e os apertas contra ti. 0 que, ao mesmo tempo, tu
fazes de mau, o mal que cometes, tua revolta contra a injustiça da vida, e
também a inveja, a aspiração e o desejo, a tua cobiça do mundo, tudo isso
provém da ilusão da multiplicidade, deste erro, que tu não és o mundo e o
mundo não é tu. Sim, tudo isso vem desta diferença entre "eu" e "tu", que não
é mais que uma ilusão, a ilusão de Maia.Vem daí igualmente teu medo da,
morte. A morte não é mais que a supressão dum erro, dum descaminho,
porque cada individuação é um descaminho. Não é mais que o
desaparecimento duma parede imaginária que separa o resto do mundo o eu,
em que tu te achas encerrado. Crês que, à. tua morte, este resto do mundo
continuará a existir, ao passo que tu - horrível pensamento! - não existirás
mais. Ora, eu te digo: .êste mundo, que é tua representação, não será mais:
mas tu (mais exatamente: aquilo que, em ti, teme a morte, que não a quer,
porque é a vontade de viver), tu permanecerás, viverás, porque a vontade, que
é a tua substância, poderá sempre encontrar o caminho da vida. Não te
pertence toda a eternidade? E com a vida, que para esta não é mais que um
tempo, quando, na verdade, ela é contínua presença, de novo o tempo te será
dado em partilha. À tua vontade está assegurada a vida, com todas as suas
alegrias e todos os seus tormentos, durante o tempo que ela a quiser. Melhor
seria para ti que ela não a quisesse. Esperando, vives tal qual és. Vês e amas,
olhas e desejas, cobiças a imagem que te é estranha, tão estranha, tão outra,
diferente de ti sofres por isso, queres atraí-Ia a ti, em ti, ser ela. Mas ser uma
coisa não é vê-Ia; para isso muito falta; é incomparavelmente mais penoso e
mais lamentável. 0 desejo é um logro causado pela representação. Tu és dado
a ti mesmo, teu corpo te é dado a princípio como representação, assim como
tudo o resto do mundo, mas ao mesmo tempo como vontade, e é a única coisa
no mundo que te foi dada também como vontade. Tudo o mais não é para ti
senão representação. 0 mundo inteiro parece-te um bailado, um espetáculo, ao
qual o teu primeiro e natural julgamento está longe de atribuir tamanha
realidade quanto a ti, o espectador; estás longe de torná-lo tão a sério quanta a
ti, no mesmo grau e com o mesmo sentido. Ao Eu, escravo do princípio de
individuação, envolto no véu de Maia, todos os outros seres aparecem como
máscara e fantasmas, aos quais não está absolutamente em condições de
atribuir uma existência tão importante e tão séria quanto a tua mesma. Só tu
importas, não é? Único ser real. Tu és o centro do mundo, e tudo conspira para
teu bem-estar, para, no máximo possível, afastar de ti os sofrimentos da vida,
para te procurar profusão de felicidades. 0 que aos outros acontece é duma
importância incomparavelmente menor, não te faz bem nem mal.Tal é o ponto
de vista do egoísmo natural, inteiro e inteiramente cego, o aprisionamento sem
remissão no princípio de individuação. Penetrar com o olhar esse princípio,
penetrar por intuição seu caráter enganador, que vela a verdade, pressentir
confusamente que não há diferença entre Eu e Tu, ter o sentimento de que por
tudo e em todos os seres não há mais que uma só e mesma vontade, é o
começo e a essência de toda ética. 0 mau é aquele que, desde que nenhuma
força exterior o impeça, comete o mal, isto é, um homem que não se contenta
com afirmar a vontade de viver tal qual aparece em seu corpo, mas, além
disso, nega a que aparece nos outros e se esforça por aniquilar-lhes a
existência, desde que entrave o caminho aos esforços de sua própria vontade.
No caráter mau exprime-se uma vontade imperiosa, que ultrapassa a afirmação
de seu próprio corpo, mas, sobretudo, uma profunda impotência do
conhecimento para se libertar das aparências assim como do princípio de
individuação, a ponto de se manter duro como o ferro na diferença que este
princípio estabelece entre sua própria pessoa e todas as outras; é precisamente
porque considera a essência das outras inteiramente estranha à sua, separada
dela por um abismo, e porque nelas não vê, no sentido literal da palavra, mais
que máscaras vazias,' atribuindo-se, com a mais profunda convicção, a única
realidade que exista.
A bondade é positiva. Faz obra de amor. Age, assim, por uma razão que
sente profundamente: se não o fizesse, julgar-se-ia semelhante a um homem
que jejuasse hoje a fim de ter amanhã mais do que pode consumir. É
exatamente assim que pensaria o "homem de bem", se deixasse os outros na
indigência, enquanto ele próprio vivesse na abastança. Para ele, o véu de Maia
tornou-se transparente; desapareceu a grande ilusão que dá à vontade dispersa
nos fenômenos a aparência de gozar aqui e sofrer ali, quando é sempre a
mesma vontade e o mesmo tormento que ela causa e sofre ao mesmo tempo. 0
amor e a bondade são compaixão, nascida do conhecimento do "Tat twan asi
", do "Isto, és tu", do gesto que levanta o véu de Maia. Já o dissera Spinoza :
"Benevolentia nihil aliud est, quam cupiditas ex commiseratio orta", "a
bondade não é mais que o amor nascido da compaixão". Mas daí resulta
claramente que, se a justiça se ergue até à vontade, pode esta por sua vez se
alçar ainda, não somente até ao amor mais desinteressado e ao mais generoso
sacrifício, mas na verdade, até à santidade. Porque, quando um homem chegou
a tal conhecimento do amor, considera o sofrimento de tudo que vive como o
seu e se apropria da dor do mundo inteiro. Vê o Todo. a vida, contradição
interna da vontade e sofrimento que não cessa. a humanidade sofredora, a
animalidade sofredora, e o conhecimento da coisa em si torna-se para êle um
alívio do querer. Nele, a vontade se desviara da vida, porque, já que a sua
compaixão refletida o obriga a negá-la, como poderia aprovar ainda.
compreendendo aí a si próprio, o querer viver, de que a vida é a obra, a
expressão e o espelho? A resolução que. chegado a tal compreensão, toma um
homem é a da renúncia, da resignação, da suprema impassibilidade. Nele se
realiza a passagem da virtude para o nobre paradoxo da ascese, um grande paradoxo,
na verdade; porque acontece então que uma individuação da vontade
renega o ser que nela aparece e que se exprime por seu corpo, que seus atos
desmentem sua aparência e entram em luta aberta com ela. 0 asceta recusa-se
a satisfazer o sexo: sua castidade é o signo de que, com a vida desse corpo, a
vontade, de que ele é a manifestação, igualmente se anula. Como definir o
santo? Aquele que não faz nada de tudo que deseja e faz tudo que não deseja.
Ora, a castidade ascética, tornada regra geral, acarretaria o fim da espécie
humana. Mas, dada a estreita ligação de todas as manifestações da vontade, a
mais alta de todas, o homem, em sua queda, arrastará também seu débil
reflexo, a animalidade, e, como assim todo conhecimento se suprimiria, o
mundo inteiro - pois sem sujeito não há objeto - por si mesmo cairia no Nada.
0 homem é, em potência, o salvador da natureza. É por isso que Angelus
Silesius, o místico, exclama
Homem! Todas as coisas te amam e correm para ti:
Tudo corre para ti para chegar a Deus.
Por paradoxal que possa parecer, malgrado toda a sua misantropia e
todas as suas palavras e queixas sobre o estado de corrupção da vida em geral,
como sobre o caráter grotesco do gênio humano em particular, apesar do
desespero que o acabrunha quando vê a miserável companhia em que caímos
pelo fato de termos nascido homens, Schopenhauer tem, no entanto, e culto do
homem, tal como o concebe. Enche-se de altiva veneração humana em
presença deste "coroamento da criação" que, para ele, como para o autor da
Gênese, significa o homem, a mais alta e a mais adiantada objetivação da
vontade. Esta mais importante forma de seu humanisno caminha inteiramente
a par com seu ceticismo político, sua oposição à Revolução, e tacitamente
concorda com eles. Para ele, o homem é venerável, porque é o ser capaz de
conhecer. Certo, todo conhecimento, em princípio, se submete à vontade, pois
dela emerge, como a cabeça do tronco. I: nos animais jamais se pode suprimir
esta sujeição da inteligência. Veja-se, porém, somente a diferença entre o
homem e o animal, no que respeita à situação da cabeça em relação ao tronco.
Nos animais inferiores, ambos se fundem e, em tortos, a cabeça se volta para a
terra, onde se encontrará os objetos do querer; nos próprios animais superiores,
a cabeça e o tronco são ainda muito mais unidos que no homem, em
quem a cabaça (aqui Schopenhauer diz o "chefe" e não a ca beça aparece
superposta livremente a ele e trazida por ele, sem estar a seu serviço. "0 Apelo
de Belvedere representa no mais alto grau es ta superioridade do homem: a
cabeça do Deus das Musas, cujo olhar vai longe, ergue-se tão livremente sobre
os ombros que parece ter-se escapado do corpo e ter-se libertado do cuidado
de servi-lo".
Podem-se fazer mais humanas associações de idéias? Não é em vão
que Schopenhauer vê a dignidade do homem na estátua do Deus das Musas. É
uma visão profunda e particular, unindo a arte, o conhecimento e a dignidade
do sofrimento humano, que se revela nesta imagem; é um humanismo
pessimista que, pois o humanismo tem essencialmente a colaboração dum
otimismo de retórica, representa qualquer coisa inteiramente nova e, ouso
afirmá-lo, uma visão de futuro fecunda no domínio das convicções. No
homem, suprema objetivação da vontade, este humanismo é iluminado pelo
reais claro conhecimento; mas, à medida que o conhecimento atinge maior
nitidez, que a consciência se eleva, também o sofrimento cresce e este, por sua
vez, em graus diferentes segundo os indivíduos; é no homem de gênio que se
eleva mais alto. "0 que determina a hierarquia é a aptidão para sofrer
profundamente" - escreveu Nietzsche, seguindo sem reserva e até o fim o
aristocratismo do sofrimento de Schopenhauer, doutrina segundo a qual a
vocação do homem e do gênio, sua mais alta distinção e seu enobrecimento é
o sofrimento. Resultam desta vocação as duas grandes possibilidades que o
humanismo de Schopenhauer consigna ao homem; chamam-se arte e
santidade. Puramente humana é a possibilidade do estado estético,
contemplação das Idéias libertada da vontade; humana e unicamente humana é
a possibilidade duma redenção definitiva, quando a vontade de viver se nega a
si mesma para se elevar mais alto que o artista, até à santidade ascética. Ao
homem é outorgada a possibilidade da correção, que anula o grande erro e
engano do ser: intuição suprema, que lhe ocorre quando chama a si todo o
sofrimento do mundo e quando pode conduzi-lo à resignação é à inversão da
vontade. Assim, o homem é a esperança secreta do mundo e de todas as
criaturas; é para ele que, por assim dizer, todos os seres correm, cheio, de
confiança; é para ele que todos levam os olhares, como para o seu possível
redentor e salvador.
Concepção de grande beleza mística, em que se exprime um respeito
humano pela, missão do homem, prevalece sobre a. misantropia de Schopenhauer,
sobre todo o seu desgosto dos homens, e os retifica. É o que me
importa: a união do pessimismo e do humanismo, a experiência espiritual, que
revela a Schopenhauer que se pode admitir a um sem excluir ao outro e que se
pode ser pessimista sem necessidade de ser bem falante ou um lisonjeador da
humanidade.
0 que nos põe em guarda, quando tentados a tomar ao pé da letra o
humanismo de Schopenhauer é sua concepção apolínea e clássica da vontade;
o que, antes, no seu caso, como em tantos outros, nos força a estabelecer
distinção entre a opinião e o ser, a não confundir o homem com seus juízos, é
seu "extremismo", a grotesca dualidade, a contradição interna de sua natureza,
que se deve chamar romântica, no sentido mais pitoresco da palavra, e que da
esfera de Goethe o afasta muito mais do que podaria êle ter consciência disso.
Raramente haverá título mais expressivo, mais exaustivo que o de sua
obra-prima, sua obra única no fundo, pois desenvolve seu único pensamento:
porque tudo o mais, tudo o que ele escreveu durante os setenta e dois anos de
sua vida, não foram mais que peças de confirmação obstinadamente reunidas,
arrimos de reforço. "0 mundo como vontade e representação": não é somente
êste pensamento, condensado na, formula mais curta; é também o homem, o
ser humano, a pessoa, a vida, o sofrimento. Nele, os impulsos da vontade,
sobretudo os da sexualidade, devem ter sido particularmente fortes e
perigosos, torturantes como as imagens mitológicas de que se serve para pintar
a escravidão da vontade; sem dúvida, corresponderam elas _à sua violenta necessidade
de conhecimento, à. sua espiritualidade clara e poderosa, mas
opondo-se-lhes de maneira tal que o resultado, caricatural em alto grau, foram
a dualidade radical e terrível e o despedaçamento da experiência, o mais
profundo desejo de salvação, a negação espiritual da própria vida, a acusação
contra seu Eu, mau, errado e culpado. Para Schopenhauer, o sexo é o "foco da
vontade'", em sua objetivação corporal o pólo oposto ao cérebro, que
representa o conhecimento.. Se, visivelmente, tivessem as duas esperas um
poder que de muito ultrapassasse o médio, os únicos beneficiados seriam a
plenitude e a força de sua natureza considerada no totalidade; o que precisamente
faz dele um pessimista e um negador do mundo são unicamente as
relações entre as duas esferas, sua total oposição, que vai até à hostilidade, que
tende à exclusão de uma delas e traz o sofrimento; essa relações, além disso,
não impedem que se chame ao seu pessimismo o produto espiritual da
plenitude e da força, mal compreendida. A dualidade de sua natureza, sensível
aos antagonismos e aos conflitos, atormentada e violenta, fá-lo sentir o mundo
a um tempo como instinto e espírito, paixão e conhecimento, "vontade" e
"representação". Como não descobriu ele em sua arte, em seu gênio, a unidade
deste mundo? Por que não comprendeu ele que o gênio não é de maneira
alguma o silêncio da sensualidade e a ostentação da vontade, de que a arte
seria a objetivação pelo espírito, mas a união e a interpenetração das duas
esferas, união que encanta mais que, isoladamente, o sexo ou o espírito? 0
estado de artista, de criador será, nele mesmo, mais que a sensualidade
espiritualizada e o espírito tornado genial pelo sexo? Goethe viu e viveu tudo
isso muito diferentemente que o pessimista Schopenhauer : de maneira mais
feliz, mais sã, mais serena, "mais clássica", menos patológica - tomada a
palavra não no sentido clínico, mas no espiritual - quero dizer, pois, menos
romântica. Para ele, sexo e espírito, "a idéia e o amor" constituíam o mais
poderoso e o mais nobre encanto da vida, e escrevia: "Porque a vida é o amor,
a vida da vicia, é o espírito". Em Schopenhauer, ao contrário, o crescimento
genial das datas esferas termina no ascetismo. Para ele, o sexo perturba
diabolicamente a contemplarão pura e o conhecimento renega o sexo,
ordenando-lhe: "Se teu olho te escandaliza, arranca-o". Conceber o
conhecimento como a "paz dá alma", a arte como o apaziguamento, como o
estado de contemplação "pura", que salva o homem, salvando-se pelo
aniquilamento da vontade, e o artista comi o esboço do santo, que
definitivamente se alforriou da vontade, tal é a idéia de Schopenhauer. Repitamo-
lo ainda: na medida em que tendi para uma objetividade apolínea, esta
concepção do espírito e da arte se encontra com a de Goethe, apresenta caráter
clássico. Mas seu extremismo e seu ascetismo são nitidamente românticos,
tomada esta palavra em sentido oposto ao do gosto de Goethe, que
conhecemos melhor por suas atitudes a respeito de Kleist.
No fundo, é certo, os termos duma alternativa como "clássico" e
"romântico", não calham a Schopenhauer : nem um nem outro exprime toda
sua alma, que não é contemporânea dos homens para os quais esses conceitos
opostos representavam ainda um papel. Está muito mais perto de nós que os
espíritos que se preocupavam com esta diferença e se classificavam segundo
ela; a forma de espírito de Schopenhauer, a sensibilidade e o ardor excessivos
de seu gênio, cujo dualismo é caricatural, são menos românticos que modernos;
desejaria dizer muito com esta designação, mas relacionando-a totalmente
com uma alma moderna, cujo calvário só é bastante visível neste século entre
Goethe e Nietzsche. Dêsse ponto de vista, Schopenhauer toma lugar entre um
e outro: mais moderno, mais doloroso, mais complicado que Goethe, mas
muito mais "clássicos", mais robusto, mais são que Nietzsche, ele operou a
transição; pode-se, pois, deduzir daí que o otimismo e o pessimismo, a
afirmação ou a negação da vida nada têm a ver com a saúde e a doença. A saúde
e a doença, se as considerarmos como juízo de valor, só com muita
precaução podem ser aplicadas à espiritualidade humana, porque são conceitos
biológicos e a natureza do homem não se reduz ao biológico.
Schopenhauer, psicólogo da vontade, é o pai de toda a psicologia
moderna, dele se vai, pelo radicalismo psicológico de Nietzsche, em linha reta
a Freud, assim como àqueles que concluíram sua psicologia do inconsciente e
a aplicaram às ciências do espírito. -O antüntelectualismo e n anti-socratismo
de Nietzsche não são mais que a afirmação filosófica e a glorificação do
primado da vontade, descoberta por Schopenhauer e da intuição pessimista
que o fez designar um lugar secundário à inteligência, serva da vontade. Esta
intuição, esta verificação - que não é precisamente humana no sentido clássico
- de que a inteligência está simplesmente às ordens da vontade, para provê-Ia
de motivos, freqüentemente muito pouco fundados e falaciosos para racionalizar
os instintos, contém uma psicologia cética e pessimista, uma ciência da
alma impiedosarnente lúcida que não somente preparou os caminhos ao que
chamamos psicanálise, como já é esta própria psicanálise. No fundo, toda
psicologia desmascara; é o olhar penetrante, irônico do naturalista, que penetra
as relações enganadoras do espírito e do instinto. Isso corresponde perfeitamente
à conivência mística da natureza nas Afinidades eletivas, em que
Goethe .faz Eduardo dizer, já enamorado, após seu primeiro encontre com
Odila : "Ela tem muito espírito", e sua mulher lhe responde: "Muito espírito?
Mas ela não abriu a bôca!" Schopenhauer por certo gostou desta passagem. É
uma amável ilustração, ainda classicamente serena, da frase em que declara
que a gente não quer uma coisa porque a reconhece boa, mas que se julga boa
porque se quer.
A verdadeira razão que nos faz hoje retomar Schopenhauer e examinar
sua concepção do mundo, o motivo que nos leva a evocar sua fisionomia
espiritual, com tudo que ela lembra, diante de uma geração que não sabe
grande coisa. dele, são as relações do pessimismo e da humanidade. É o desejo
de transmitir aos homens do tempo presente, nos quais o sentimento de
humanidade atravessa grave crise, a experiência pessoal da união particular
contraída pela melancolia e pela altivez do home mnesta filosofia. 0
pessimismo de Schopenhauer é sua humanidade. Sua explicação do mundo
pela vontade, sua intuição da onipotência dos instintos, o rebaixamento da razão
outrora divina, do espírito, da inteligência, reduzida a não ser mais que o
instrumento da vida que quer afirmar-se, tudo isso é anticlássico e, em
essência, inumano. Mas sua humanidade, sua espiritualidade residem
precisamente no matiz pessimista de sua doutrina, que o leva a renegar o
mundo e a pregar um ideal ascético; no fato de que êsse grande escritor,
versado em sofrimento, cuja prosa é a da grande época de nossa civilização
humanista, tirou o homem do elemento biológico e da natureza, fez de sua
alma, que sente e conhece, o teatro da inversão do querer e viu nele o salvador
possível de todas as criaturas.
Em seu primeiro terço, o século XIX foi uma reação total contra o
racionalismo e o intelectualismo clássicos; comprovou-se numa admiração do
inconsciente, numa glorificação de instinto, que julgava dever à "vida" e que
somente preparou assaz, para os, instintos maus, dias felizes... Freqüentemente
o pessimismo consciente se mudou então em prazer de prejudicar, o reconhecimento
de verdades amargas pelo espírita transformou-se em ódio e em
despreza do próprio espírito e, sem a menor generosidade a seu respeito, a
gente se pôs do lado da vida, isto é, do lado do mais forte; porque, se uma
coisa é certa e provada, é exatamente esse fato de nada ter a vida a temer do
espírito, e do conhecimento e que, na terra, o espírito. não a vida, tem o mínimo
de força e a maior necessidade de proteção. Mas a própria
anti-humanidade atual é, afinal, uma experiência humana, uma resposta unilateral
aos eternos problemas da essência e destino do homem. Visivelmente
ela precisa dum corretivo que restabeleça o equilíbrio, e eu creio que a
filosofia evocada aqui pode hoje prestar bons serviços. Chamei Schopenhauer
de “moderno"; deveria ter dito "futuro". Os elementos que compõem sua
personalidade, sua harmonia claro-escura, a mistura de Voltaire e de Jacó
Bõhme, o paradoxo de sua prosa clássica e clara, que revela o mais profundo,
o mais noturno abismo, sua altiva misantropia, que jamais renega seu respeito
pela idéia do homem, em suma, o que eu chamei sua humanidade pessimista,
apareceme rico de futuro e promete talvez, à sua construção teórica, que
esteve na moda e foi célebre, caindo depois em semi-esquecimento, uma ação
nova, profunda e fecunda, sobre os homens. Sua sensualidade espiritual, sua
doutrina - que era vida - segundo a qual conhecimento, pensamento, filosofia
não são apenas ocupação de cabeça, mas do homem inteiro - coração e
sentidos, corpo e alma - em uma palavra, o que dele faz um artista, tudo isso
pode ajudar a produzir-se uma humanidade que ultrapassa a aridez da razão e
deificação do instinto. Porque sempre, companheiro do homem na jornada que
penosamente o conduz a si mesmo, a arte atinge primeiro o objetivo.
Fonte: Cultvox – Os melhores e-livros da Internet
www.cultvox.com.br

sábado, novembro 10, 2007

O DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA ou O CONTRA UM

Manuscrito De Mesmes
TEXTO ESTABELECIDO
POR PIERRE LÉONARD
Em Ter vários senhores nenhum bem sei, Que um seja o senhor, e que um só seja o rei.
Dizia Ulisses em Homero, falando em público. Se nada mais tivesse dito, senão: Em Ter vários
senhores nenhum bem sei, estaria tão bem dito que bastaria; mas se para raciocinar precisava dizer que a
dominação de vários não podia ser boa, pois o poderio de um só é duro e insensato tão logo tome o título
de senhor, em vez disso foi acrescentar o contrário:
Que um só seja o senhor, e que um só seja o rei.
Talvez fosse preciso desculpar Ulisses, que possivelmente precisava então de usar essa linguagem para
acalmar a revolta do exército, conformando, creio eu, suas palavras mais ao tempo que à verdade. Mas
para falar com conhecimento de causa, é um extremo infortúnio estar-se sujeito a um senhor, o qual
nunca se pose se certificar de que seja bom, pois sempre está em seu poderio ser mau quando quiser; e
em Ter vários senhores, quantos se tiver quantas vezes se é extremamente infeliz. Se por hora não quero
debater essa questão tão tormentosa - se as outras formas de república são melhores do que a monarquia -
gostaria ainda de saber, antes de pôr em dúvida a posição que a monarquia deve Ter entre as repúblicas,
se ela deve Ter alguma, pois é difícil acreditar que haja algo público nesse governo onde tudo é de um.
Discurso da Servidão Voluntária
file:///C|/site/livros_gratis/discurso_da_servidao_voluntaria.htm (1 of 15) [26/06/2001 20:26:46]
Mas tal questão está reservada para um outro tempo e exigiria um tratado à parte, ou melhor, acarretaria
por si mesma todas as disputas políticas.
Por hora gostaria apenas de entender como poder ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades,
tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o
poder de prejudicá-los senão enquanto tem vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum
senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que
se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o
pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados
e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele e só, nem amar as
qualidades pois é desumano e feroz para com eles. Entre nós, homens, a fraqueza é tal que
freqüentemente precisamos obedecer à força; há necessidade de contemporizar, nem sempre podemos ser
os mais fortes. Portanto, se uma nação é obrigada pela força da guerra a servir a um, como a cidade de
Atenas aos trinta tiranos, não é de se espantar que ela sirva, mas de se lamentar o acidente; ou melhor,
nem espantar-se nem lamentar-se e sim carregar o mal pacientemente e reservar-se para melhor fortuna
no futuro.
Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de
nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e
muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que
merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes
tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande
cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar
algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para coloca-lo num lugar onde
poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só
se recebeu o bem.
Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício,
ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem
governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria
vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um
campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de
um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e
feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios,
incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha.
Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém
possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer com razão que é falta de
fibra. Mas se cem, se mil agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que
não se trata de covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem
passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um,
não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza,
ataque um exército, conquiste um reino. Então, que mostro de vício é esse que ainda não merece o título
de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se Ter feito, e a língua se
recusa nomear?
Que se ponham cinqüenta mil homens em armas de um lado, outro tanto de outro, que sejam alinhados
em posição de combate, que acabem encontrando-se, uns livres combatendo por sua franquia, os outros
Discurso da Servidão Voluntária
file:///C|/site/livros_gratis/discurso_da_servidao_voluntaria.htm (2 of 15) [26/06/2001 20:26:46]
para tirá-la deles: a quem por conjectura será prometida a vitória, quem se pensará que vai mais
galhardamente à luta, os que esperam como recompensa de suas penas a manutenção de sua liberdade ou
os que não podem esperar outro salário dos golpes que dão ou que recebem senão a servidão de outrem?
Uns têm sempre diante dos olhos a felicidade da vida passada, a espera de alegria semelhante no futuro;
não se lembram tanto desse pouco que suportam enquanto dura uma batalha, mas do que lhes será
conveniente suportar para sempre, eles, seus filhos e toda a posteridade; os outros nada têm que os
encoraje senão uma pontinha de cupidez, que de repente some diante do perigo e que ao que parece não
pode ser tão ardente a ponto de apagar-se à menor gota de sangue que saia de suas feridas. Nas tão
famosas batalhas de Milcíades, de Leônidas, de Temístocles, que ocorreram há dois mil anos e que ainda
hoje estão tão frescas na memória dos livros e dos homens como se fosse ontem, que ocorreram na
Grécia para o bem dos Gregos e exemplo para o mundo inteiro - o que pensar que deu a tão pouca gente,
como eram os Gregos, não o poder, mas a fibra para sustentar a força de tantos navios que o próprio mar
estava carregado, para derrotar tantas e tão numerosas nações que o esquadrão dos Gregos não teria
bastado se fossem precisos capitães aos exércitos dos inimigos, senão que, ao que parece, naqueles dias
gloriosos, não se tratava da batalha dos Gregos contra os Persas mas da vitória da liberdade sobre a
dominação, da franquia sobre a cobiça?
É estranho ouvir falar da bravura que a liberdade põe no coração daqueles que a defendem; mas o que,
em todos os países, em todos os homens, todos os dias, faz com que um homem trate cem mil como
cachorros e os prive de sua liberdade? Quem acreditaria nisso se em vez de ver apenas ouvisse dizer? E
se se dissesse que isso só ocorria em países estranhos e terras longínquas, quem não pensaria que era
inventado e achado e não verdadeiro? No entanto, não é preciso combater esse único tirano, não é preciso
anulá-lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe
coisa alguma, e sim nada lhe dar; não é preciso que o país se esforce a fazer algo para si, contanto que
nada faça contra si. Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois
cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser
servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal - melhor dizendo,
persegue-o. Eu não o exortaria se recobrar a liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode
Ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser
homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de
viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver a sua vontade. Que! Se para Ter liberdade basta
desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo
ganhá-la com uma única aspiração e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar
com seu sangue - o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a
morte salutar? Como o fogo de uma pequena chama torna-se grande e sempre cresce, e quanto mais
lenha encontra mais está disposto a queimar; e sem que se jogue água para apagá-lo, é só não pôr mais
lenha que ele, não tendo mais o que consumir, consome-se a si mesmo e vem sem força alguma, e não
mais se lhes dá, quanto mais são servidos, mais se fortalecem, e se tornam cada vez mais fortes e
dispostos a tudo aniquilar e destruir; e se nada se lhes dá, se não se lhes obedece, sem lutar, sem golpear,
ficam nus e desfeitos, e não são mais nada, como o galho se torna seco e morto quando a raiz não tem
mais humor ou alimento.
Para adquirir o bem que querem, os audaciosos não temem o perigo, os avisados não rejeitam a dor; os
covardes e embotados não sabem suportar o mal nem recobrar o bem, limitam-se a aspirá-los, e a virtude
de sua pretensão lhes é tirada por sua covardia; por natureza fica-lhes o desejo de obtê-lo. esse desejo,
essa vontade de aspirar a todas as coisas que, uma vez adquiridas, os tornariam felizes e contentes, é
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comum aos sensatos e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes. Resta dizer uma única coisa, a qual
não sei como falece natureza aos homens para desejá-la. É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão
aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois
dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não
desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem
a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil.
Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem! Deixais
levar, à vossa frente, o mais belo e o mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos, roubar vossas
casas e despojá-las dos móveis antigos e paternos; viveis de tal modo que não podeis vos gabar de que
algo seja vosso; e pareceria ser agora uma grande fortuna para vós conservar a meias vossos bens, vossas
famílias e vossas vidas vis; e todo esse estrago, esse infortúnio, essa ruína vos advêm não dos inimigos
mas sim, por certo, do inimigo, e daquele que engrandeceis, por quem ides tão valorosamente à guerra,
para a grandeza de quem não vos recusais a apresentar vossas pessoas à morte. Aquele que vos domina
tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o
menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para
destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como
tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de
onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria
atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e
traidores de vós mesmos? Semeais vossos frutos para que deles faça o estrago; mobiliais e encheis vossas
casas para alimentar suas pilhagens; criais vossas filhas para que ele tenha com que embebedar sua
luxúria, criais vossos filhos para que ele faça com eles o melhor que puder, leve-os em suas guerras,
conduza-os à carnificina, torne-os ministros de suas cobiças e executores de suas vinganças; na dor
arrebentais vossas pessoas para que ele possa mimar-se em suas delícias e chafurdar nos prazeres sujos e
vis; ficais mais fracos para torná-lo mais forte e rígido mantendo mais curta a rédea; e de tantas
indignidades - que os próprios bichos ou não as sentiriam ou não a suportariam - podeis vos livrar se
tentais, não vos livrar mas apenas querer fazê-lo. decidi não mais servir e sereis livres; não pretendo que
o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis como um grande colosso, de quem
subtraiu-se a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.
Mas os médicos certamente aconselham que não se ponha a mão nas feridas incuráveis; e não sou
sensato ao querer pregar isso ao povo que há muito perdeu todo conhecimento e que, por não sentir mais
o seu mal, bem mostra que sua doença é mortal. Por conjectura procuremos então, se pudermos achar,
como enraizou-se tão antes essa obstinada vontade de servir que agora parece que o próprio amor da
liberdade não é tão natural.
Em primeiro lugar creio não haver dúvida de que, se vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e
com as lições que nos ensina, seriamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de
ninguém. Da obediência que cada um, sem outra advertência que a de sua natureza, presta a seu pai e sua
mãe todos os homens testemunham, cada um por si. Da razão que nasce conosco ou não, o que é uma
questão debatida a fundo pelos acadêmicos e abordada por toda a escola dos filósofos, por ora não
pensaria falhar ao dizer o seguinte: há em nossa alma alguma semente natural de razão que, mantida por
bom conselho e costume, floresce em virtude e, ao contrário, freqüentemente sufocada, aborta, não
podendo enfrentar os vícios sobrevindos. Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual
não se pode ser cego é que a natureza, ministra de deus e governante dos homens, fez-nos todos da
mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos , para que nos entreconhecêssemos todos
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como companheiros, ou melhor, como irmãos. E se, fazendo as partilhas dos presentes que ela nos dava,
cedeu alguma vantagem de seu bem ao corpo ou no espírito, a uns mais que aos outros, no entanto não
entendeu colocar-nos neste mundo como em um campo cerrado e não enviou para cá os mais fortes nem
os mais espertos como bandidos armados numa floresta, para aí dominar os mais fracos; mas, antes, é de
se crer que, atribuindo assim as partes maiores a uns, aos outros as menores, queria fazer lugar ao afeto
fraternal para que ele tivesse onde ser empregado, tendo uns o poderio de dar ajuda, os outros
necessidade de recebê-la. E de resto, se essa boa mãe deu-nos a todos a terra inteira por morada,
alojou-nos todos na mesma casa, figurou-nos todos no mesmo padrão, para que cada um pudesse
mirar-se e quase reconhecer um no outro; se ela nos deu a todos o grande presente da voz e da fala para
convivermos e confraternizarmos mais, e fazermos, através da declaração comum e mútua de nossos
pensamentos, uma comunhão de nossas vontades; e se tratou por todos os meios de estreitar e apertar tão
forte o nó de nossa aliança e sociedade; se em todas as coisas mostrou que ela não queria tanto fazer-nos
todos unidos mas todos uns - não se deve duvidar de que sejamos toso naturalmente livres, pois somos
todos companheiros; e não pose cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto algum em
servidão, tendo-nos posto todos em companhia.
Mas em verdade de nada serve debater se a liberdade é natural, pois não se pode manter alguém em
servidão sem malfazer e nada há mais contrário ao mundo que a injúria, posto que a natureza é
completamente razoável. Portanto, resta à liberdade ser natural do mesmo modo que, no meu entender,
nascemos não somente de posse de nossa franquia mas também com afeição para defendê-la. Ora, se por
acaso temos alguma dúvida a respeito e abastardamo-nos tanto que não podemos reconhecer nossos bens
assim como nossas nativas afeições, será preciso que eu vos faça a honra que é vossa e, por assim dizer,
alce os bichos brutos ao púlpito para ensinar-vos vossa natureza e condição. Os bichos -valha-me Deus! -
se os homens não se fizerem de surdos, gritam-lhes: viva a liberdade! Entre eles há vários que morrem
logo que são capturados, como o peixe que abandona a vida ao mesmo tempo que a água; do mesmo
modo deixam a luz e não querem sobreviver à sua franquia natural. Se os animais tivessem entre si
algumas preeminências, fariam destas sua nobreza. Os outros, dos maiores aos menorzinhos, quando são
capturados resistem tanto com as unhas, os chifres, o bico e os pés que declaram o quanto prezam o que
perdem; uma vez capturados dão-nos tantos sinais notórios do conhecimento que têm de seu infortúnio,
que é bonito de se ver que doravante há mais langor que vida, e que continuam vivendo mais para
lamentar sua liberdade perdida do que para se comprazer na servidão. Que outra coisa quer dizer o
elefante - que, tendo se defendido até não poder mais, não vendo mais finalidade nisso, encontrando-se
na iminência de ser capturado, crava suas mandíbulas e quebra seus dentes nas árvores - senão que seu
grande desejo de permanecer livre como é inspira-o e o aconselha a negociar com os caçadores se ficará
livre a troco de seus dentes e se será autorizado a dar seu marfim e pagar esse resgate por sua liberdade?
Cevamos o cavalo desde que nasce para acostumá-lo a servir; e embora saibamos acariciá-lo tão bem,
quando está sendo domado ele morde o freio, escoiceia contra a espora, como, parece para mostrar à
natureza e assim ao menos testemunhar que, se serve, não é por sua vontade, mas por nossa imposição. O
que dizer então?
Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem - como eu disse outrora
passando o tempo em nossas rimas francesas. Pois escrevendo a ti, ó Longa, temo misturar meus versos
que nunca te leio para que, aparentando contentamento, não me faças sentir-me todo glorioso. Em suma,
se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a
liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com
o protesto de um desejo contrário - que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o
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único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o
desejo de retomá-lo?
Há três tipos de tiranos: uns obtêm o reino por eleições do povo; outros pela força das armas; outros por
sucessão de sua raça. Como se sabe bem, os que o adquiriram pelo direito da guerra comportam-se nele
como se estivessem (costuma-se dizer) em terra conquistada. Comumente os que nascem reis não são
melhores, pois tendo nascido e sido criados no seio da tirania sugam a natureza do tirano com o leite, e
agem com os povos a eles submetidos como com seus servos hereditários: e segundo a compleição a que
estão mais inclinados, são avaros ou pródigos, tratando o reino como à sua herança. Parece-me que
aquele a quem o povo deu o estado deveria ser mais suportável e creio que o seria; mas assim que se vê
elevado acima dos outros, lisonjeado com um não sei quê que chamam de grandeza, decide não sair mais
- comumente ele age para passar a seus filhos o poderio que o povo lhe outorgou; e desde que adotaram
essa opinião, é estranho como superam os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldade, não
vendo outro meio de garantir a nova tirania senão estreitando bastante a servidão e afastando tanto seus
súditos da liberdade que, embora sua lembrança seja fresca, possam fazer com que a percam. Assim, para
dizer a verdade, vejo que existe entre eles alguma diferença; mas escolha nenhuma vejo; pois se diversos
são os meios de aos reinados chegar, quase sempre semelhante é maneira de reinar. Os eleitos os tratam
como se tivessem pegado touros para domar; os conquistadores os consideram presa sua; os sucessores
pensam tratá-los como seus escravos naturais.
A propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição nem atraída
pela liberdade, que de uma e outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou
livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que prefeririam somente à razão obedecer do que a
um homem servir; a menos que fosse como a de Israel que, sem coerção e nenhuma precisão, deu a si
mesma um tirano. Povo cuja história nunca leio sem enorme indignação, a ponto de quase tornar-me
desumano, por rejubilar-me com tantos males que lhe sucederam. Mas certamente para que todos os
homens, enquanto têm algo de homem, deixem-se sujeitar, é preciso um dos dois: que sejam forçados ou
iludidos. Forçados pelas armas estrangeiras, como Esparta ou Atenas pelas forças de Alexandre; ou pelas
facções, como havia se tornado a Senhoria de Atenas nas mãos de Pisístrato. Por ilusão, eles muitas
vezes perdem a liberdade; mas nisso não são enganados por outrem com a freqüência com que são
iludidos por si mesmos. Como o povo de Siracusa, principal cidade da Sicília (dizem-me que hoje se
chama Saragoça), que, na iminência de guerras, reparando irrefletidamente apenas no perigo presente,
elevou a tirano Dionísio Primeiro e encarregou-o de conduzir o exército; e não atinou que o havia
engrandecido tanto que quando esse patife voltou vitorioso, fez-se de capitão rei, e de rei tirano, como se
não tivesse vencido seus inimigos mas seus cidadãos. É incrível como o povo, quando se sujeita, de
repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para
recobrá-la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considerá-lo dir-se-ia que não perdeu sua
liberdade e sim ganhou sua servidão. É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força;
mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito
por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão,
sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam Ter outro bem nem
outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento. E no entanto não
há herdeiro tão pródigo e despreocupado que às vezes não corra os olhos nos registros de seu pai para ver
se goza de todos os direitos de sua herança ou se não o usurparam ou a seu predecessor. Mas o costume,
que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão
grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir - e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar
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veneno - para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão. Não se pode negar
que a natureza tem em nós parte bastante para puxar-nos para onde quer e nos reconhecer bem ou mal
nascidos; porém, maldita seja a natureza se se deve confessar que ela tem em nós menos poder do que o
costume - pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado - e que o alimento sempre nos
conforma à sua maneira. As sementes do bem que a natureza põe em nós são tão miúdas e escorregadias
que não podem suportar o menor choque do alimento contrário: abastardam-se mais facilmente do que se
mantêm, dissolvem-se e se anulam tanto quanto as árvores frutíferas que têm um natural próprio que
conservam se as deixam crescer, mas logo abandonam para dar outros frutos estranhos e não os seus
próprios se as enxertam. Cada erva tem sua propriedade, seu natural e singularidade; todavia o gelo, o
tempo, a terra ou a mão do jardineiro nela aumentam ou diminuem muito de sua virtude: a planta que se
viu num lugar, noutros não se consegue reconhecer. Quem visse os Venezianos - punhado de gente
vivendo tão livremente que o pior deles não almejaria ser o rei de todos, nascidos e criados de tal modo
que não reconhecem nenhuma ambição senão a de serem os melhores para vigiar e mais cuidadosamente
tomar conta do mantimento da liberdade; de tal modo ensinados e formados desde o berço que não
aceitariam todas as outras alegrias da terra para perder a menor parcela de sua franquia - quem tivesse
visto, digo, esses personagens e de lá fosse para as terras daquele que chamamos grão-senhor, ao ver ali
gente que só quer Ter nascido para servi-lo e que para manter seu poderio abandona a vida, pensaria que
estes e os outros têm um mesmo natural ou, em vez, estimaria que, tendo saído de uma cidade de
homens, entrar num parque de bichos? Dizem que Licurgo, o governante de Esparta, criara dois cães
irmãos, ambos amamentados com o mesmo leite, um engordado na cozinha, o outro acostumado pelos
campos ao som da trompa e do cornetim, querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são
como a criação os faz, pôs os dois cães no meio do mercado e entre eles uma sopa e uma lebre; um
correu para o prato e o outro para a lebre embora, diz ele, fossem irmãos. Portanto, com suas leis e seu
governo, ele criou e formou tão bem os lacedemônios que cada um deles preferiria morrer mil mortes a
reconhecer outro senhor que a lei e a razão.
Tenho prazer ao relembras as palavras que outrora disseram um dos favoritos de Xerxes, o grande rei dos
Persas, e dois Lacedemônios. Quando Xerxes aparelhava seu grande exército para conquistar a Grécia,
enviou seus embaixadores às cidades gregas pedindo água e terra: era a maneira que os Persas tinham de
intimar as cidades à rendição. Não enviou a Atenas nem a Esparta porque os que seu pai Dario enviara,
os Atenienses e Espartanos haviam lançado nos fossos uns, nos poços ou outros, dizendo-lhes que
valentemente pegassem ali água e terra para levar a seu príncipe; essa gente não podia suportar que
sequer através da fala se tocasse em sua liberdade. Por terem agido assim, os Espartanos souberam que
haviam incorrido na ira dos deuses, até de Taltíbio, o deus dos arautos; e para apaziguá-los ousaram
enviar a Xerxes dois de seus cidadãos para que a ele se apresentassem e que fizesse deles o que quisesse,
sendo assim recompensado pelos embaixadores de seu pai que haviam matado. Dois espartanos, um
chamado Espéritas e outro Búlis, ofereceram-se para ir fazer tal pagamento; de fato foram e, a caminho,
chegaram ao palácio de um Persa que se chamava Hidarnes e era administrador do rei para todas as
cidades da Ásia que se encontram à beira-mar. Este os recebeu com honrarias e grande amabilidade; e
após várias palavras, uma puxando a outra, perguntou-lhes por que recusavam tanto a amizade do rei.
Vede, Espartanos, disse ele, e através de mim reconhecei como o rei sabe honrar os que o defendem e
pensai que se dele dependêsseis faria o mesmo convosco; se dele dependêsseis e se ele vos tivesse
conhecido, não há dentre vós quem não seria senhor de uma cidade da Grécia. Quanto a isso, Hidarnes,
não poderias dar-nos bom conselho, disseram os Lacedemônios, pois tentaste o bem que nos prometes;
mas aquele que gozamos, não sabes o que é; conheceste o favor do rei; mas da liberdade nada sabes - que
gosto tem, como é doce. Ora, se dela tivesse provado, tu mesmo nos aconselharias a defendê-la, não com
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a lança e o escudo mas com unhas e dentes. Só o Espartano dizia o que era preciso dizer; mas certamente
ambos falavam como haviam sido criados. Pois não era possível que o Persa lamentasse a liberdade, não
a tendo tido nunca, nem que o Lacedemônio suportasse a sujeição, tendo provado da franquia.
Quando Catão, o uticano, ainda criança e debaixo de vara, com freqüência ia e vinha em caso do ditador
Sila, jamais lhe fechava a porta, em razão do lugar e da casa de onde procedia como também porque
eram parentes próximos. Seu mestre sempre o acompanhava quando lá ia, como estão acostumadas as
crianças de família ilustre. Observou que em casa de Sila, em sua presença ou por ordem sua,
prendiam-se uns, condenavam-se outros, um era banido, outro estrangulado, um pedia o confisco de um
cidadão, outro a cabeça: em suma, tudo se passava ali como se fosse não a casa de um oficial de cidade,
mas de um tirano de povo; e não era um tribunal de justiça, mas uma oficina de tirania. Disse então a seu
mestre o jovem rapaz: por que não me dais um punhal? Eu o esconderei sob minha toga; entro com
freqüência no quarto de Sila antes dele levantar; tenho o braço bastante forte para livrar a cidade dele. Eis
aí com certeza uma fala de Catão: era o começo desse personagem digno de sua morte. E, no entanto, que
não se diga seu nome nem seu país, que se conte apenas o fato como é - a coisa falará por si; e se
adivinhará que era Romano, nascido em Roma, quando esta era livre. Por que tudo isto? Por certo não
porque eu estime que o país e a terra queiram dizer alguma coisa; pois em todas as regiões, em todos os
ares, amarga é a sujeição e aprazível ser livre; mas porque em meu entender deve-se Ter piedade
daqueles que ao nascer viram-se com o jugo no pescoço: ou então que sejam desculpados, que sejam
perdoados, pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem
que ser escravos lhes é um mal. Como diz Homero dos Cimérios, se houvesse algum país onde o sol se
mostrasse de outro modo que a nós e depois de tê-los iluminado por seis meses seguidos os deixasse
dormente na escuridão sem vir revê-los o outro meio ano - seria de se espantar se os que tivessem
nascido durante a longa noite não tivessem ouvido falar da claridade, se não tendo visto dias se
acostumassem ás trevas em que nasceram sem desejar a luz? Nunca se lamenta o que nunca se teve e o
pesar só vem depois do prazer; e com o conhecimento do mal sempre está a lembrança da alegria que
passou. A natureza do homem é mesmo de ser franco e querer sê-lo; mas, também sua natureza é tal que
naturalmente ele conserva a feição que a educação lhe dá.
Portanto, digamos então que ao homem todas as coisas lhe são como que naturais; nelas se cria e
acostuma; mas só ele é ingênuo a isso - a que o chama sua natureza simples e inalterada; assim, a
primeira razão da servidão voluntária é o costume - como os mais bravos courtaus* (*cavalos de orelhas
e crina cortadas) que no início mordem o freio e depois descuram; e onde outrora escoiceavam contra a
sela, agora se ostentam nos arreios e soberbos pavoneiam-se sob a barba. Eles dizem que sempre foram
súditos, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal, convencem-se com
exemplos e ao longo do tempo eles mesmos fundam a posse dos que os tiranizam; mas como em verdade
os anos nunca dão o direito de malfazer, aumentam a injúria. Sempre se encontra alguns mais bem
nascidos que sentem o peso do jugo e não podem se impedir de sacudi-lo, que jamais se acostumam com
a sujeição e que sempre, como Ulisses - que por mar e terra sempre procurava ver a fumaça de sua casa -
não podem se impedir se atentar para seus privilégios naturais e de se lembrar de seus predecessores bem
como de seu primeiro der. De bom grado são estes que, tendo entendimento nítido e espírito clarivedente,
não se contentam, como a grande populaça, em olhar o que está diante dos pés se não divisam atrás e na
frente e só rememoram ainda as coisas passadas para julgar as do tempo vindouro e para medir as
presentes; são estes que, tendo a cabeça por si mesmos bem feita, ainda a poliram com o estudo e o saber.
Estes, mesmo que a liberdade estivesse inteiramente perdida e de toda fora do mundo, a imaginam e a
sentem em seu espírito, e ainda a saboreiam; e a servidão não é de seu gosto por mais que esteja vestida.
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O grão-turco percebeu bem isto; que os livros e a doutrina dão aos homens, mais que qualquer outra
coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania; averiguo que em suas terras ele
não tem sábios, nem os quer. Ora, comumente, ficam sem efeito o bom zelo e afeição dos que apesar do
tempo conservaram a devoção à franquia, por mais numerosos que sejam, porque não se conhecem; sob o
tirano, é-lhes tirada toda a liberdade de fazer, de falar, e quase de pensar: todos se tornam singulares em
suas fantasias. Portanto, Momo, o deus zombeteiro, não zombou demais quando censurou o homem que
Vulcano fizera por não Ter-lhe posto uma janelinha no coração para que por aí se pudesse ver seus
pensamentos. Fizeram questão de dizer que Bruto, Cássio e Casco, quando empreenderam a libertação de
Roma, ou melhor, de todo o mundo, não quiseram que Cícero - esse grande defensor do bem público, se
já houve algum - tomasse parte e estimaram seu coração fraco demais para um feito tão elevado;
confiavam muito em sua vontade mas não estavam certos de sua coragem. E, todavia, quem quiser
percorrer os feitos do passado e os anais antigos encontrará poucos ou nenhum dos que, vendo seu país
maltratado e em más mãos, tendo decidido com boa intenção, íntegra e não dissimulada, libertá-lo, não
tenham conseguido; e a quem a própria liberdade, para se tornar visível, não tenha ombreado. Como
Harmódio, Aristogitão, Trasíbulo, Bruto, o velho, Valério e Dion porque pensaram virtuosamente,
afortunadamente executaram; nesses casos, a bom querer fortuna quase nunca falha. Bruto, o jovem, e
Cássio eliminaram com muito êxito a servidão; mas reconduzindo a liberdade, morreram não
miseravelmente (pois que blasfêmia dizer que houve algo miserável nessa gente, em sua vida e em sua
morte!) mas com certeza para grande prejuízo, perpétuo infortúnio e total ruína da república que, ao que
parece, foi enterrada com eles. As outras empresas que mais tarde foram feitas contra os imperadores
romanos não passavam de conjuração de gente ambiciosa, à qual não se deve lamentar os inconvenientes
que lhe sucederam, pois salta aos olhos que desejavam não eliminar mas mudar a coroa, que pretendiam
banir o tirano e reter a tirania. Estes, eu mesmo não gostaria que fossem bem sucedidos e estou contente
de que, através de seu exemplo, tenham mostrado que não se deve abusar do santo nome da liberdade
para má empresa.
Mas voltando à nossas palavras, das quais quase me perdera: a primeira razão por que os homens servem
de bom grado é que nascem servos e são criados como tais. Desta decorre uma outra: que sob os tiranos
as pessoas facilmente se tornam covardes e efeminadas. Disso sei maravilhosamente graças a Hipócrates,
o avô da medicina, que esteve atento e assim o disse em um dos livros que estabelece das doenças. Esse
personagem certamente tinha um coração de todo bom e o demonstrou bem quando o grande rei quis
atraí-lo para junto de si à força de ofertas e grandes presentes; respondeu-lhe francamente que teria
escrúpulos em meter-se a curar os bárbaros que queriam matar os Gregos e bem servir com sua arte
àquele que da Grécia queria se servir. A carta que lhe enviou pode ser vista ainda hoje entre suas obras e
testemunhará para sempre seu bom coração e sua nobre natureza. Ora, é certo, portanto, que com a
liberdade se perde de uma só vez a valentia. A gente subjugada não tem júbilo nem furor no combate:
parte para o perigo quase como que amarrada, toda por demais embotada, e não sente ferver em seu
coração o ardor da liberdade que faz desprezar o perigo e dá vontade de ganhar a honra e a glória numa
bela morte entre seus companheiros. Entre gente livre é à porfia, cada qual melhor, cada um pelo bem
comum, cada um por si; todos esperam Ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória; mas a gente
subjugada, além dessa coragem guerreira, também perde a vivacidade em todas as outras coisas. Disso
muito bem sabem os tiranos, e ao vê-la tomando essa feição, ainda a ajudam para que afrouxe mais.
Xenofonte, historiador grave e de primeira linha entre os Gregos, fez um livro onde faz Simônides falar
com Hierão, tirano de Siracusa, a respeito das misérias do tirano. O livro é cheio de advertências boas e
graves e que, em meu entender, têm graça na medida do possível. Prouvera deus que os tiranos que
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sempre existiram o tivessem posto diante dos olhos e o tivessem usado como espelho! Não posso
acreditar que não teriam reconhecido suas verrugas e tido vergonha de suas manchas. Nesse tratado ele
conta o pesar em que se encontram os tiranos que, fazendo mal a todos, são obrigados a temer a todos;
entre outras coisas, diz que ou maus reis servem-se de estrangeiros na guerra e os assoldadam pois não
ousam a confiança de pôr armas na mão de sua gente, a quem fizeram mal. (De fato, houve reis bons que
tiveram nações estrangeiras a seu soldo, até mesmo franceses, ainda mais outrora do que hoje; mas com
outra intenção: a fim de proteger os seus, pois para poupar os homens estimavam nula a perda do
dinheiro. É o que dizia Cipião, o grande Africano, creio eu: que preferiria Ter salvo um cidadão a Ter
derrotado cem inimigos). Mas por certo está confirmado que o tirano jamais pensa que seu poderio esteja
assegurado, senão quando chegou ao ponto de não Ter às suas ordens homem de valor. Portanto, a ele se
dirá com razão o mesmo que Trasão, onde Terêncio se gaba de ter objetado ao senhor dos Elefantes:
Porque sois tão audaz
Os bichos amestrais.
Porém essa artimanha de tiranos para bestializar seus súditos não pode ser mais claramente conhecida
que através do que Ciro fez com os Lídios depois de Ter-se assenhorado de Sardes, principal cidade da
Lídia, de Ter dominado Creso, esse rei tão rico, e de tê-lo levado discricionariamente. Trouxeram-lhe
notícias de que os Sardos tinham se revoltado. Sua autoridade os teria submetido prontamente; mas como
não queria saquear uma cidade tão bela nem inquietar-se sempre com o mantimento de um exército para
guardá-la, descobriu um grande expediente para apoderar-se dela: ali estabeleceu bordéis, tavernas e
jogos públicos, e proclamou uma ordenação que os habitantes tiveram de acatar. Ficou tão satisfeito com
tal guarnição que desde então nunca mais foi preciso puxar da espada contra os Lídios: essa gente pobre
e miserável divertia-se inventando todo tipo de jogo, de tal modo que os Latinos tiraram daí sua palavra,
e o que chamamos passatempo eles chamam Ludi, como se quisessem dizer Lidi. Não todos os tiranos
declararam tão expressamente que queriam efeminar sua gente; mas, de fato, o que este ordenou
formalmente e sob sua autoridade, a maioria perseguiu. Na verdade, o natural da arraia miúda, cujo
número é cada vez maior nas cidades, é que seja desconfiada para com aquele que a engana. Não penseis
que pássaro algum melhor caia no laço, nem que peixe algum pela gulodice da isca mais depressa se
aferre ao anzol pois, como se diz, todos os povos são prontamente logrados para a servidão pela primeira
pluma que lhes passam na boca; e é maravilhoso como cedem rápido, contanto que lhes façam cócegas.
Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os bichos estranhos, as medalhas, os
quadros e outras drogas que tais eram para os povos antigos as iscas da servidão, o preço de sua
liberdade, as ferramentas da tirania. Os tiranos antigos tinham esse meio, essa prática, esses atrativos
para adormecer seus súditos sob o jugo. Assim, achando bonitos esses passatempos, entretidos por um
prazer vão que passava diante de seus olhos, os povos abobados acostumavam-se a servir tão totalmente
e até pior do que as criancinhas que aprendem a ler vendo as brilhantes imagens do livro iluminados. Os
tiranos romanos descobriram ainda um outro ponto: dar festas freqüentes para as decúrias públicas,
abusando como podiam dessa canalha que, mais que qualquer outra coisa, não resiste o prazer da boca. O
mais prudente e esperto dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da
república de Platão. Os tiranos prodigalizavam um quarto de trigo, um sesteiro de vinho e um sestércio; e
então dava pena ouvir gritar: Viva o rei! Os broncos não percebiam que apenas recobravam parte do que
era seu e que até mesmo no que recobravam o tirano não lhes teria dado se antes não lhes tivesse tirado.
O que hoje tinha apanhado o sestércio e se empanturrado no festim público abençoando Tibério e Nero e
sua bela liberalidade, no dia seguinte, obrigado a abandonar seus bens à cobiça deles, seus filhos à
luxúria, seu próprio sangue à crueldade desses magníficos imperadores, ficava mudo como uma pedra e
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imóvel como um tronco. O povo sempre teve isto: ao prazer que não pode receber honestamente, é de
todo aberto e dissoluto; e ao erro e à dor que pode sofrer honestamente, insensível. Agora não vejo
ninguém que ouvindo falar de Nero não trema à simples menção a esse monstro vil, essa ignóbil e
imunda peste do mundo; e no entanto, desse aí, desse incendiário, desse carrasco, dessa besta feroz,
pode-se afirmar que, após sua morte, tão vil quanto sua vida, o nobre povo romano teve tanto desgosto ao
relembrar os jogos e os festins que esteve a ponto de pôr luto, como escreveu Cornélio Tácito, autor bom
e grave, e dos mais seguros. O que não é de se estranhar, visto o que esse mesmo povo fizera antes, na
morte de Júlio César, que revogou as leis e a liberdade. Personagem que, parece-me, não tinha valor
algum, pois sua própria humanidade, que tanto apregoam, foi mais prejudicial que a crueldade do mais
selvagem tirano que já houve; porque, na verdade, foi essa sua doçura venenosa que para o povo romano
adoçou a servidão. Mas após sua morte, esse povo que tinha ainda na boca os seus banquetes e no
espírito a lembrança de sua prodigalidade, para homenageá-lo e transformá-lo em cinzas rivalizava-se
amontoando os bancos da praça e mais tarde erguendo-lhe uma coluna como ao pai do povo (assim dizia
o capitel) e prestando-lhe homenagem póstuma maior do que por direito devia a homem no mundo, salvo
por acaso aos que o tinham matado. Os imperadores romanos também não se esqueceram do seguinte: de
comumente tomar o título de Tribuno do povo, tanto porque esse ofício era considerado santo e sagrado
como porque era estabelecido para a defesa e proteção do povo. E por meio dos favores desse ofício
asseguravam-se de que o povo confiaria mais neles, como se dele devessem ouvir o nome e não, ao
contrário sentir os efeitos. Não são muito melhores os que hoje não fazem mal algum, mesmo
importante, sem antes fazer passar algumas palavras bonitas sobre o bem público e a tranqüilidade geral.
Pois, ó Longa, conhecer bem o formulário e certas passagens do qual poderiam ser servir bastante
sutilmente - mas, com certeza, na maior parte não pode haver finura onde há tanto despudor. Os reis da
Assíria e também, depois deles, os de Média só apresentavam-se em público o mais tarde que podiam,
para fazer a populaça se perguntar se não eram algo mais que homens e deixar nesse devaneio a gente de
bom grado imaginativa para com as coisas que não pode julgar com os olhos. Assim, com esse mistério,
tantas nações, que durante muito tempo pertenceram ao império assírio, acostumavam-se a servir e
serviam com mais boa vontade por não saberem que senhor tinham nem a muito custo se tinham, e todos
temiam acreditando em um que ninguém jamais vira. Os primeiros reis do Egito só se mostravam
portando ora um gato, ora um ramo, ora fogo sobre a cabeça, e desse modo mascaravam-se e fingiam-se
de mágicos. E assim, pela estranheza da coisa, suscitavam em seus súditos alguma reverência e
admiração; mas, no meu entender, teriam apenas se prestado ao passatempo e à troça na gente que não
tivesse sido tola ou sujeita demais. Dá pena ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado utilizavam
para fundar sua tirania, de quantas mesquinharias se serviam, encontrando essa populaça sempre às
ordens, e que vinha cair na rede mesmo quando mal soubessem armá-la; que sempre enganaram tão
facilmente, a ponto de nunca tê-la sujeitado tanto como quando mais zombavam dela.
O que direi de um outro belo conto em que caíram os povos antigos? Acreditaram piamente que o dedão
de Pirro, rei dos Epirotas, fazia milagres e curava os doentes das vísceras; enriqueceram ainda mais o
conto: que depois de terem queimado o corpo morto todo o dedo achava-se entre as cinzas, salvo apesar
do fogo. O próprio povo tolo sempre faz as mentiras para depois acreditar nelas; muita gente assim
escreveu, mas salta aos olhos que reuniu isso a partir dos rumores de cidade e do falatório da populaça.
Vespasiano fez maravilhas ao voltar da Assíria e passar por Alexandria para ir a Roma aposerar-se do
império: endireitava os coxos, tornava clarividentes os cegos e muitas outras belezas cujo logro quem
não conseguia enxergar era, em meu entender, mais cego que aqueles a quem curava. Os próprios tiranos
achavam bem estranho que os homens pudessem suportar um homem fazendo-lhes mal; queriam muito
pôr a religião na frente como anteparo, e se possível, tomar emprestada alguma amostra da divindade
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para o mantimento de sua miserável vida. Entre eles Salmoneu - se se acredita na sibila de Virgílio em
seu inferno - que, por Ter zombado assim das pessoas e por Ter querido fazer-se de Júpiter, agora presta
contas e ela o vê no fundo do inferno:
Vi Salmoneu que sofreu cruel castigo, enquanto imitava as chamas de Júpiter e o ruído do
Olimpo. Levado por quatro cavalos e agitando o archote, atravessava, em triunfo, os povos
gregos e a cidade de Elide, reclamando honras divinas. Louco! Acreditava que com o
tropear dos cascos dos cavalos conseguiria imitar a tempestade e o raio inimitável. O Pai
onipotente, porém, atirou-lhe, de dentre as nuvens espessas, não um archote, não um facho,
mas um raio e o precipitou em um horrendo turbilhão*. (*Virgílio: Eneida. Trad. David
Jardim Jr., V Biblioteca Clássicos de Ouro Universais. Ed. De Ouro, Rio de Janeiro. S/d.)
Se este que apenas se fazia de tolo está sendo agora tão bem tratado lá embaixo, creio que os que
abusaram da religião para serem maus achar-se-ão em situação ainda melhor.
Os nossos semearam na França algo parecido: sapos, flores de lis, a âmbula e a auriflama; os que de
minha parte, como sói acontecer, não quero descrer, pois até agora nem nós nem nossos antepassados
tivemos ocasião para suspeitar, pois sempre tivemos reis tão bons na paz e tão intrépidos na guerra que,
embora nasçam reis, parece que não foram feitos como os outros pela natureza mas escolhidos antes de
nascer pelo deus todo-poderoso para o governo e proteção do reino. E ainda que assim não fosse, não
gostaria de entrar na liça por causa disso para discutir a verdade de nossas histórias nem descascá-las tão
intimamente, para não tolher esse belo jogo onde nossa poesia francesa poserá esgrimir-se bem, agora
não mais costurada mas, ao que parece, renovada por nosso Ronsard, nosso Baif, nosso du Bellay,
adiantando tanto a nossa língua que, ouso esperar, em breve diante de nós os Gregos e os Latinos talvez
só tenham o direito de primogenitura. E com certeza eu prejudicaria muito nossa rima (com prazer uso
essa palavra e ele não me desagrada; pois, embora vários a tivessem tornado mecânica, vejo contudo
bastante gente capaz de enobrecê-la novamente e restituir-lhe sua glória primeira), digo: eu a prejudicaria
muito se agora dela suprimisse os belos contos do rei Clóvis, nos quais parece-me que já vejo quão
prazerosamente, quão à vontade alegrar-se-à a veia de nosso Ronsard em sua Franciade. Sou atento ao
seu alcance, conheço o espírito agudo, sei da graça do homem: ele usará a auriflama como os Romanos
suas ancilas.
E os escudos atirados do céu, diz Virgílio. Cuidará tão bem de nossa Âmbula como os Atenienses do
cesto de Erictônio. Fará falar de nossas armas como eles de sua oliva, que afirmam encontrar-se ainda na
torre de Minerva. Eu seria por certo ultrajante em querer desmentir nossos livros e correr tanto nos cursos
de nossos Poetas. Mas voltando aonde não sei como tinha desviado o fio de minhas palavras: nunca
houve como os tiranos que, a fim de se manterem, se esforçam para acostumar o povo a eles não só por
obediência e servidão, mas também por devoção. O que eu disse até aqui quanto ao que ensina a gente a
servir mais voluntariamente só serve então aos tiranos para o povo miúdo e grosseiro.
Mas agora chego a um ponto que em meu entender é a força e o segredo da dominação, o apoio e
fundamento da tirania. No meu juízo, muito se engana quem pensa que as alabardas, os guardas e a
disposição das sentinelas protegem os tiranos. Creio que a eles recorrem mais como formalidade e
espantalho do que por confiança. Os arqueiros proíbem a entrada do palácio aos mal-vestidos que não
têm meios, não aos bem-armados que podem fazer alguma empresa. Certamente é fácil contar que entre
os imperadores romanos não forma tantos os que conseguiram escapar de algum perigo graças a seus
guardas quanto os que foram mortos por seus próprios arqueiros. Não são os bandos de gente a cavalo,
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não são as companhias a pé, não são as armas que defendem o tirano; de imediato, não se acreditará
nisso, mas com certeza é verdade. São sempre quatro ou cinco que mantêm o tirano; quatro ou cinco que
lhe conservam o país inteiro em servidão. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e
por si mesmos dele se aproximaram; ou então por ele forma chamados para serem os cúmplices de suas
crueldades, os companheiros de seus prazeres, os proxenetas de suas volúpias, e sócios dos bens de suas
pilhagens. Tão bem esses seis domam seu chefe, que ele deve ser mau para a sociedade não só com suas
próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que crescem debaixo deles e
fazem de seus seiscentos o que os seis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis
mil, cuja posição elevaram; aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros para
que tenham na mão sua avareza e crueldade e que as exerçam no momento oportuno; e, aliás, façam
tantos males que só possam durar à sua sombra e isentar-se das leis e da pena por seu intermédio. Grande
é o séquito que vem depois e quem quiser divertir-se esvaziando essa rede não verá os seis mil mas os
cem mil, os milhões que por essa corda agarram-se ao tirano servindo-se dela como Júpiter em Homero,
que se gaba de trazer a si todos os deuses ao puxar a corrente. Daí se originava o crescimento do Senado
sob Júlio, o estabelecimento de novas posições, o surgimento de ofícios; considerando bem, certamente
não uma reforma da justiça mas novos sustentáculos da tirania. Em suam: que se chegue lá por favores
ou subfavores, os ganhos ou restolhos que se tem com os tiranos, ocorre que afinal há quase tanta gente
para quem a tirania parece ser proveitosa quanto aqueles para quem a liberdade seria agradável. Como
dizem os médicos, se há em nosso corpo alguma coisa estragada, logo um outro lugar onde nada está
acontecendo rapidamente se dirige para a parte bichada; do mesmo modo, logo que um rei declarou-se
tirano, tudo que é ruim, toda a escória do reino - não falo de um monte de gatunos e desorelhados que
numa república não podem fazer muito mal nem bem, mas dos que são manchados por ambição ardente e
notável avareza - reúnem-se à sua volta e o apoiam para participarem da presa e serem eles mesmos
tiranetes sob o grande tirano. Os grandes ladrões e os famosos corsários fazem assim: uns desnudam o
país, os outros perseguem os viajantes, uns armam emboscadas, os outros estão á espreita, os outros
massacram, os outros esfolam; e embora existam primazias entre eles e uns sejam apenas criados e os
outros chefes do bando, no final não há um que não se sinta parte, senão do espólio principal, ao menos
da busca. Contam que os piratas Cilicianos não só reuniram-se em tal número que foi preciso enviar
Pompeu, o grande, contra eles, mas também que atraíram para uma aliança várias belas cidades e grandes
centros em cujos portos punham-se a salvo ao voltarem das incursões, dando-lhes como recompensa
algum proveito da receptação da pilhagem.
Assim o tirano subjuga os súditos uns através dos outros e é guardado por aqueles de quem deveria se
guardar, se valesses alguma coisa; mas, como se diz, para rachar lenha é preciso cunhas da própria lenha.
Eis aí seus arqueiros, seus guardas, seus alabardeiros; não que eles mesmos às vezes não sofram por
causa dele; mas esses perdidos e abandonados por deus e pelos homens ficam contentes de suportar o
mal para fazê-lo, não àquele que lhes malfez, mas àqueles que suportam como eles e que nada podem
fazer. Vendo porém essa gente que gera o tirano para se encarregar de sua tirania e da servidão do povo,
com freqüência sou tomado de espanto por sua maldade e às vezes de piedade por sua tolice. Pois, em
verdade, o que é aproximar-se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar
com as duas mãos e abraçar a servidão? Que ponham um pouco de lado sua ambição e que se livrem um
pouco de sua avareza, de depois, que olhem-se a si mesmos e se reconheçam; e verão claramente que os
aldeões, os camponeses que espezinham o quanto podem e os tratam pior do que a forçados ou escravos -
verão que esses, assim maltratados, são no entanto felizes e mais livres do que eles. O lavrador e o
artesão, ainda que subjugados, ficam quites ao fazer o que lhes dizem; mas o tirano vê os outros que lhe
são próximos trapaceando e mendigando seu favor; não só é preciso que façam o que diz mas que
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pensem o que quer e amiúde, para satisfazê-lo, que ainda antecipem seus pensamentos. Para eles não
basta obedecê-lo, também é preciso agradá-lo, é preciso que deixam seu gosto pelo dele; e já que se
aprazem com o prazer dele, que deixam seu gosto pelo dele, que forçam sua compleição, que despem o
seu natural, é preciso que estejam atentos às palavras dele, a voz dele, aos sinais dele; e aos olhos dele;
que não tenham olho, pé, mão, que tudo esteja alerta para espiar as vontades dele e descobrir seus
pensamentos. Isso é viver feliz? Chama-se isso, viver? Há no mundo algo menos suportável do que isso,
não digo para um homem de coração, não digo para um bem-nascido, mas apenas para um que tenha o
senso comum ou nada mais que a face do homem? Que condição é mais miserável que viver assim, nada
tendo de seu recebendo de outrem sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida?
Mas eles querem servir para Ter bens, como se não pudessem gerar nada que fosse deles, pois nada
podem dizer de si que sejam de si mesmos; e como se alguém pudesse Ter algo de seu sob um tirano,
querem fazer com que os bens sejam deles e não se lembram que são eles que lhe dão a força para tirar
tudo de todos e não deixar nada de que se possa dizer que seja de alguém. Vêem que nada senão os bens
torna os homens sujeitos à crueldade dele, que para ele só a riqueza é crime digno de morte. Ama só as
riquezas e só despoja os ricos, que ainda assim vêm se apresentar como que diante do açougueiro, gordos
e fortes, para se oferecerem e despertarem seu apetite. Esses favoritos não devem se lembrar tanto dos
que em torno dos tiranos receberam muitos bens, mas sim dos que tendo acumulado durante algum
tempo ali perderam depois os bens e vidas. Não deve passar-lhes tanto pela cabeça quantos ali receberam
riquezas, mas quão poucos se conservaram. Que se percorram todas as histórias antigas, que se
considerem as de nossa lembrança, e ver-se-á plenamente como é grande o número dos que, tendo ganho
por meios espúrios a confiança dos príncipes, tendo usado de sua maldade ou abusado de sua
simplicidade, finalmente foram por eles mesmos aniquilados; e assim como neles tinham achado um
meio para elevá-los, mais tarde neles também encontraram a inconstância que os destruiu. Com certeza,
entre as muitas pessoas que já se acharam próximas de tantos reis maus, poucas ou quase nenhuma foram
as que alguma vez não experimentaram em si mesmas a crueldade do tirano, que antes haviam atiçado
contra os outros: tendo enriquecido com os despojos de outrem à sombra de seu favoritismo, no mais das
vezes elas acabam enriquecendo-o com seus despojos.
As próprias pessoas de bem - se é que às vezes existe alguma amada pelo tirano -, por mais que sejam os
primeiros em sua graça, por mais que nelas brilhem a virtude e a integridade que impõem algum respeito
até aos mais malvados quando vistas de perto, as pessoas de bem, digo, aí não poderiam durar; é preciso
que compartilhem do mal comum e que sintam a tirania em seus propósitos. Um Sêneca, um Burrus, um
Traséas, esse terno de pessoas de bem, as quais - aliás, o infortúnio das duas primeiras aproximou do
tirano e lhes pôs nas mãos a condução de suas coisas, ambos por ele estimados, queridos ambos, e um
deles ainda o havia criado e tinha como garantia de sua amizade a educação de sua infância - pois esses
três bastam para testemunhar com sua morte cruel como há pouca segurança no favor de um mau senhor.
E, na verdade, que amizade se pode esperar daquele que tem mesmo o coração tão duro para odiar seu
reino, o qual só faz obedecê-lo, e que ainda por se saber incapaz de amar empobrece a si mesmo e destrói
seu império?
Ora, se se quer dizer que eles enfrentaram esses inconvenientes por serem gente de bem, que se olhe
francamente em torno do próprio, e ver-se-á que não duraram mais os que caíram em suas graças e se
mantiveram por meios espúrios. Quem já ouviu falar de amor mais desenfreado, de afeição mais
persistente, quem já leu sobre um homem mais obstinadamente encarnado numa mulher do ele em
Popéa? Ora, mais tarde ela foi envenenada por ele próprio. Sua mãe, Agripina, tinha matado o marido,
Cláudio, para lhe dar o lugar no império; para obesquiá-lo, ele nunca criara dificuldade de espécie
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alguma, nem sofrimento. Então seu próprio filho, sua cria, o Imperador feito por sua mão, depois de lhe
faltar muitas vezes, afinal tirou-lhe a vida; e na ocasião não houve quem não dissesse que ela bem
merecera essa punição, se tivesse sido pelas mãos de qualquer um que não aquele a quem ela havia dado
a vida. Quem já foi mais fácil de manipular, mais simples, melhor dizendo, mais verdadeiramente parvo
que o imperador Cláudio? Quem já foi mais traído pela mulher do que ele por Messalina? Finalmente a
pôs nas mãos do carrasco. Quando a têm, a simplorice sempre fica nos tiranos para não poderem fazer o
bem; mas não sei como, por menor que seja o seu espírito, este afinal acorda para usar da crueldade até
contra aqueles que lhe são próximos. Bastante comum é o dito espirituoso desse outro que, vendo
descoberta a garganta de sua mulher, a quem amava muito e sem a qual parece que não teria podido vir,
acariciou-a com esta promessa: se eu ordenar, daqui a pouco esse belo pescoço será cortado. Eis por que,
em sua maior parte, os tiranos antigos eram comumente mortos por seus maiores favoritos que, tendo
conhecido a natureza da tirania, não podiam assegurar-se tanto da vontade do tirano, bem como
desconfiavam de seu poderio. Assim foi morto Domiciano por Estéfano, Cômodo por uma de suas
próprias amantes, Antonino por Macrino, como quase todos os outros.
É certamente por isso que o tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado, é uma coisa
santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por muita estima; se
mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do
outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a
constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça;
entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas
se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices.
Ora, mesmo quando isso não impedisse, ainda seria difícil encontrar um amor seguro em um tirano, pois,
estando acima de todos e não tendo companheiro, já está além dos limites de amizade, cuja verdadeira
presa é a igualdade, que jamais quer claudicar, e caminha sempre igual. Eis porque há entre os ladrões
(dizem) alguma fé na partilha do roubo: porque são pares e companheiros; e se não se amam entre si, ao
menos se temem e não querem tornar menor a sua força desunindo-se. Mas os que são favoritos do tirano
nunca podem Ter certeza alguma disso, posto que aprendeu com eles mesmos que tudo pode e nada há,
direito ou dever, que o obrigue, no arrogo de fazer sua vontade contar como razão, e de não Ter
companheiro algum mas de ser de todos senhor. Não é, portanto uma lástima que, vendo tantos exemplos
notórios, vendo o perigo tão presente, ninguém queira aprender à custa de outrem e que tanta gente de tão
bom grado se aproxime dos tiranos? Que não haja um só que tenha a ponderação e a coragem de lhes
dizer o que diz a raposa ao leão que fingia-se de doente, como sustenta o conto: de bom grado iria te ver
em tua cova; vejo muitas pegadas de bichos que vão até a ti; mas não vejo uma só que volte para
trás?(pág.36; p.2)
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