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sábado, outubro 20, 2007

A filosofia entre a religião e a ciência _ Bertrand Russel

Os conceitos da vida e do mundo que chamamos "filosóficos" são
produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos
herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar
"científica", empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos,
individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses
dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em
certo grau, caracteriza a filosofia.
"Filosofia" é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras,
umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido
mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo
a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia,
consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não
conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do
que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento
definido - eu o afirmaria - pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que
ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia
e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os
campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do
máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a
ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não
nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o
mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é
espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado
de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito?
Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da
natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela
ordem? é o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo
conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno
planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao
mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e
uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente
inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira
realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou
vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para
a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último
refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório.
As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes,
mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses
problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, - poderíeis perguntar - perder tempo com problemas
tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como
indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador,
tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que
o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos
aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a
humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como
em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação,
devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia,
temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As
circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais
circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas
seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é
impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que
temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera
uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza,
na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de
suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas,
Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou
persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante,
paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa
época, pode proporcionar àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na
Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na
antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo
e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao
século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos
e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O
terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os
períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais
mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam
justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal
passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista
católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do
que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência,
acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este
período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-
Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em
qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a
liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o
indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia
modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos
desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a
restrições impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles, é
dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas
éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos
romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais
aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao
rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e
menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma
relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o
Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social,
durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, f oi
assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força -
primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos
romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos,
primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado.
Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da
liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das
velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como
especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais
racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da
época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição
grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos
ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto
é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o
seu dever para com o Estado.l A opinião de que "devemos obedecer mais a
Deus que ao homem", como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se
sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram
ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou
do Cristianismo de Constantinopla. Mas no Ocidente, onde os imperadores
católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da
Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade
religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda
hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização
da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a
destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura
notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu,
em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em
1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de
Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano
de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade
do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre
a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália,
França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia.
A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle
sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI
), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder
inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a
Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi,
também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do
norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua
liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior
parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta
renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais
compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos.
A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o
que havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições
que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a
essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos
conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona
e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal,
mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em
quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra,
assassínio, pilhagem ou rapto. é possível que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em
si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir
neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador
moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes
valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o
espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos,
submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos
de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo
e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão
floresceram. às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo
eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja
saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial
da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no
romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo
intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A
filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas
apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém -
principalmente entre os frades franciscanos - havia alguns que, por várias
razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura
estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos
Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o
extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de
Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o
expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais
tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição
equilibrada de todo o mundo ideológico medieval
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese
filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade
de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se
ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu
cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e
o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N
o período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da
superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que
passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de
Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que
aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos
recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar,
analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda
uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento,
uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico
expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre
um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada,
em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do
poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou
poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares.
Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos,
empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder
político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e
Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa
nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande
parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de
sentir dos homens, como jamais exercera antes - influência essa que,
progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade
da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de
Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se
transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos
quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia
acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista:
os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como
coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos
enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a
anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral,
tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o
domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de
coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois
as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha,
se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se
deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do
norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que
subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia
como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra,
mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência
alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do
purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade.
Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se
para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo
perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente
nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais
poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu
domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de
Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na
maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica;
sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos
gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com
as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja
Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era
dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao
contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade
devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à
sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia
nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais
divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes
à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver
nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era
estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação
íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na
política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à
estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único
Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à
escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia,
no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um
grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como
na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro
como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando,
depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez
social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a
existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior
deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento
que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas
uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a
filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum
cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a
política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos
haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo,
dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois
afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo
Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas,
chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se
estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a
origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais
relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em
menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um
pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna,
embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo
primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os
governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se
aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática
dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente
anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas
manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do
individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à
"sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não
pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código
moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do
herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto
byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma
comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores.
Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás
de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos
magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar
que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente
agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a
doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo
e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão
contrário ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à
autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais
extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição
que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes,
Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se
acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha
moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é
conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e
que resulta a adoração do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos
antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles
que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A
esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina
advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando,
portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas
não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente,
que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo"
devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de
irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da
coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos
anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas,
contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de
religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que
chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo
pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e
continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que
persiste durante longo tempo - tem a sua parte de razão e a sua parte de
equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais
conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente
racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado,
a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela
tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista
estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do
individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações
importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos,
vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de
gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se
desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal
começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma
nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa
interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido
de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias
à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida,
somente o futuro poderá demonstrá-lo.

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